Flávio Paiva: Aumento do preço do gás provoca revolta no sul do Chile
Por Flávio Paiva*, na Carta Maior
A Patagônia chilena experiencia um momento histórico de cunho social, político e econômico. Há uma semana as principais cidades da Região de Magalhães – Punta Arenas, Puerto Natales e Porvenir – estão com as portas do comércio e da indústria fechadas e com os acessos aéreos, portuários e terrestres bloqueados por barricadas feitas por moradores, em protesto contra o aumento de 16,8% no preço do gás, anunciado pelo governo de Sebastián Piñera, no início do mês. Tudo está parado. Não há como fazer câmbio, abastecer carro, comer em restaurantes ou fazer compras em supermercados.
Embora tenha como um dos seus principais articuladores a Assembleia Cidadã de Magalhães (ACM) – fórum constituído por 14 entidades da sociedade civil – a mobilização tem caráter transversal e essencialmente orgânica. A causa comum, que leva à convergência das mais diferentes forças políticas, econômicas e sociais da região, manifestadas em constantes buzinaços e bandeiraços, é a luta contra a ameaça de privatização da Enap (estatal de petróleo), o desemprego e a inviabilização do consumo de gás, produto vital para o funcionamento das empresas e, sobretudo, para a calefação domiciliar.
As reações do governo chileno à paralisação regional de Magalhães passam por mudanças no gabinete da República. Foram quatro alterações ministeriais feitas esta semana: Defesa, Transporte, Trabalho e Energia. As pastas das Minas e Energia foram fundidas em uma só, entregue a Laurence Golborne, que fica encarregado do diálogo com as lideranças do movimento. Os sindicalistas estão apreensivos com a mudança no ministério do Trabalho, visto que para seu comando foi nomeada a senadora Evelyn Matthei, conhecida por seus posicionamentos contra as reivindicações dos trabalhadores.
O presidente Piñera, que foi ministro do general Augusto Pinochet, está recorrendo também a Lei de Segurança do Estado, que permite inclusive a intervenção das Forças Armadas, na tentativa de intimidar o movimento. As pessoas envolvidas nas barricadas, por exemplo, poderão ser identificadas e acionadas judicialmente, independentemente de estarem exercitando ações pacíficas de cidadania. Aqui em Punta Arenas, não se vê situações de saques, nem de violência por parte dos participantes dessa luta contra o aumento do preço do gás. O clima é de solidariedade, com voluntários fazendo comida em grande quantidade para os que estão em piquetes e barricadas.
O sociólogo Manuel Rodriguez, membro da executiva da ACM, recebeu-me gentilmente em sua residência e falou da surpreendente força civil das organizações sociais de Magalhães. “O que está acontecendo aqui é algo semelhante ao movimento dos piqueteiros que derrubaram o presidente Fernando de la Rua, na Argentina”. A comparação com as paralisações contra a queda vertiginosa do nível de vida, ocorridas em 2001 no país vizinho, mostra a confiança de Rodriguez no potencial mobilizador da cidadania na sua região.
O movimento tem tomado proporções bastante razoáveis. Pessoas de Magalhães que moram em outras regiões do Chile e no exterior estão ampliando a mobilização nas praças de armas das suas cidades de residência e em redes sociais digitais, organizando protestos como os que têm sido feitos na Praça da Constituição, em frente ao Palácio de La Moneda, na capital Santiago. Esse tipo de mobilização tem sido chamado de ““Magallatón”. Ontem, 16, no final do dia, as rádios de Punta Arenas anunciaram a adesão dos sindicatos dos petroleiros de todo o país ao movimento.
Em conversa com o laboratorista José Rojas Miranda, militante do Partido Socialista, ele explica esse fenômeno de mobilização transversal como um “fenômeno” histórico da cidadania na região: “O Chile como país foi descoberto antes por Magalhães. Depois, os movimentos operários, anárquicos, influenciados pela Revolução Francesa, também chegaram por aqui. O Partido Socialista foi fundado inicialmente no Chile em Punta Arenas. As reações contra a ditadura de Pinochet começaram nesta terra com o puntarenaço. Os protestos contra a alta do gás estão acontecendo dessa forma porque temos uma cidadania capaz de mobilizar-se”.
As várias tentativas de diálogo feitas até o momento não obtiveram consenso. O governo está propondo um aumento imediato de 3%, o que seria um ajuste relativo ao IPC de 2010, deixando que um projeto de lei definisse o aumento real para setembro, época de temperaturas abaixo de zero na região, quando as pessoas mais precisam utilizar o gás para se aquecerem. Os dirigentes da mobilização não estão aceitando. A desconfiança é muito grande em qualquer proposta do governo que seja para solução no futuro. Os habitantes de Magalhães não querem correr o risco de precisarem voltar aos tempos das fogueiras.
Durante a manifestação de domingo na Praça de Armas, perguntei à deputada Carolina Goic (Partido Democrata Cristão) sobre a perspectiva de um acordo. Ela respondeu que “a solução virá no momento que o governo reconquistar a confiança da população com uma proposta de regulação decente, que respeite o gás que se produz em Magalhães e que garanta o subsídio permanente, e não com medidas centralistas, que não levam em conta as particularidades da região”.
Na campanha eleitoral que o levou à presidência, Sebastián Piñera havia prometido em Punta Arenas que todos poderiam ficar muito tranqüilos porque a política do seu governo manteria um tratamento especial para o gás domiciliar na Região de Magalhães (El Pinguino, caderno Analisis, p.3, 08/01/2011). O gás é um insumo indispensável e de uso massivo na Patagônia. Tanto que sempre foi subsidiado como incentivo ao povoamento e desenvolvimento da região. Magalhães produz o seu próprio gás, mas só tem direito a cerca de 10% dessa produção, pois 90% do produto é utilizado para abastecer a Methanex, multinacional canadense, produtora de metanol.
Dentro de uma visão eminentemente econômica, sem levar em consideração as peculiaridades regionais e os fatores sociais envolvidos na questão do uso do gás em Magalhães, com o aumento do preço do gás o governo estaria aumentando a atratividade do setor petroleiro para a privatização. A alta do gás também serviria para inibir o consumo residencial, liberando o produto para aumentar ainda mais o fornecimento para a Methanex, que, como a maior consumidora de gás em todo o Chile, estaria pressionando o governo a cumprir compromissos que não estariam sendo honrados pela estatal de petróleo.
O aumento do preço do gás causaria forte impacto nos setores de transporte, de alimentos, do turismo e de eletricidade, uma vez que a energia da região é gerada com base em turbinas a gás. Entretanto, não é somente por esses motivos que o sentimento de indignação contra a medida do governo está presente em todos os lugares. Os habitantes da Região de Magalhães sentem-se usurpados pelo poder central e traídos pelo presidente. Nas ruas, ouve-se quem defenda a independência da região, sua anexação à Patagônia argentina ou até uma composição territorial com as ocupações inglesas no sul da América do Sul.
*Flávio Paiva é jornalista, colunista semanal do Diário do Nordeste e autor, dentre outros, dos livros “Como Braços de Equilibristas” (Edições UFC), “Mobilização Social no Ceará” (Edições Demócrito Rocha) e “Eu era assim – Infância, Cultura e Consumismo” (Cortez Editora) flaviopaiva@fortalnet.com.br