´Gado recebia tratamento melhor que os empregados nas fazendas´
André Casagrande Raupp, procurador da República responsável por 23 denúncias de situação de trabalho escravo em Marabá, sudeste do Pará, somente na última semana, afirma que a pobreza contribui para a exploração de mão-de-obra em uma das regiões mais carentes do país.
Durante essas autuações, as autoridades flagraram uma situação que, em entrevista a CartaCapital, o procurador diz considerar “aviltante à dignidade do trabalhador”: alojamentos de lona e palha, sem paredes nem água potável – enquanto o gado era protegido em alojamentos de madeira e com telhado. “Muitas pessoas acabam bebendo água represada do mesmo local que os animais”, diz Raupp.
Os números na região, onde se concentra a maior incidência desses crimes no Brasil, são assustadores. Desde 1986, 282 ações foram ajuizadas na região – a maioria após 2002, quando foram intensificadas ações do tipo pelo País.
Em pelo século XXI, a situação persiste. Estimativas do Comitê de Coordenação e Monitoramento do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, organização que conta com a participação do Instituto Ethos, apontam que cerca de 25 mil pessoas entram em situação de trabalho escravo anualmente no país. Porém, desde 2008, o número de estabelecimentos inspecionados vem diminuindo, assim como a quantidade de empregados resgatados nessa condição, que passou de cinco mil para pouco mais de 1,3 mil em 2010. “Esse quadro pode ser uma constatação de menor número de denúncias por parte dos trabalhadores, ou até mesmo uma diminuição neste tipo de condição”, diz.
Uma das formas de identificar empregadores que têm ligação com trabalho escravo é a “lista suja” do Ministério do Trabalho, atualizada a cada seis meses. O documento, que atualmente traz 210 nomes, impede que esses indivíduos obtenham financiamento em instituições públicas ou privadas. Pará e Maranhão lideram entre os que têm o maior número de empregadores na tabela.
A pena por redução à condição análoga à de escravo varia de dois a oito anos de prisão e a frustração de direito trabalhista pode chegar a dois anos de reclusão.
Acompanha abaixo a entrevista de CartaCapital com o procurador André Casagrande Raupp:
CartaCapital – Em quais condições esses trabalhadores são encontrados?
André Casagrande Raupp – Umas das principais características do trabalho escravo é a submissão ao trabalho degradante, que implica vários elementos que apontam o tratamento aviltante à dignidade do trabalhador. Por exemplo, os alojamentos são de palha, sem parede, com lona que mal protege da chuva. As pessoas dormem ao relento, sem armário, cozinha ou cadeira. Há casos em que não existe fornecimento de água potável, ou sequer a preocupação de se deixar um local acessível de água para a ingestão. Muitas pessoas acabam bebendo água represada do mesmo local que os animais. Não há recipiente para acondicionar a água ou instalações sanitárias nos alojamentos. Não são fornecidos equipamentos de segurança e muitos empregadores vendem alimentos e materiais de trabalho. Todos esses fatores formam um conjunto de características nas quais se percebe que o empregador não tem nenhuma preocupação com as condições do trabalhador. Há um caso específico em que o tratamento na fazenda dado ao gado era melhor que ao dos trabalhadores. O alojamento dos animais era de madeira, tinha telhado, parede e era protegido, enquanto os trabalhadores viviam em lugar com uma mera cobertura de lona e palha.
CC – Os registros de casos de trabalho escravo no sudeste do Pará aumentaram a partir de 2002. A que se deve esse crescimento?
ACR – Existe toda uma cobrança internacional no sentido de que seja feito esse aumento de fiscalização. O próprio Ministério do Trabalho e Emprego fomentou a investigação, mas a partir de 2003 houve uma alteração legal do código penal 149. A redação antiga do código apontava como crime apenas redução à condição de situação de trabalho escravo. Hoje diz que reduzir, submeter a condições degradantes, seja por condições de trabalho forçado ou por jornada exaustiva, também é crime. A mudança ampliou e descreveu a tipificação desse tipo de ação. Com a alteração de 2003, houve uma ampliação das hipóteses dos casos em que caberia o crime de indução ao trabalho escravo. Muitos juízes entendem que, até 2003, as simples condições degradantes não eram caracterizadoras de redução ao condicionamento escravo. O MPF tem o entendimento que mesmo antes já existia a possibilidade de enquadrar a condição degradante como sendo uma das formas condicionais ao trabalho escravo. A mudança legal deu mais força para as denúncias e atuações judiais dos órgãos de fiscalização.
CC – O que explica a incidência desse crime no sudeste do Pará?
ACR – Com base em um seminário que fizemos em 2010, com parceira do Ministério Público Federal e Universidade do Pará, levantamos alguns elementos para o sudeste do Pará apresentar esses índices. Encontramos fatores econômicos, das necessidades da população, que possui uma renda menor e está mais próxima da linha da pobreza. Isto acaba favorecendo ao trabalho escravo, porque acaba discutindo o viés da mão-de-obra e o capital. As pessoas precisam sobreviver e o dono do capital explora essa mão-de-obra infringindo as leis. Há também a questão do aparato estatal: esse é um local em que o Estado está mais distante. A estrutura dos órgãos estatais não é tão presente como em outras regiões do país. Além disso, ainda existe a questão cultural, pois as pessoas não procuram saber quais são seus direitos.
CC – Em novembro de 2010, instituições que atuam no combate ao crime realizaram um seminário em Marabá, que gerou a Carta de Marabá. O documento pedia maior integração entre os órgãos fiscalizadores. Isso acontece porque há violência contra quem fiscaliza?
ACR – O perigo nas fiscalizações sempre existe, por isso é importante ter uma equipe acompanhada da Polícia Federal ou da Polícia Rodoviária Federal, que têm feito esse trabalho no Pará em sistema de rodízio. É importante que haja essa proteção, porque em uma situação dessas pode haver um prejuízo para integridade dos fiscais.
CC – Quais medidas estão sendo tomadas para evitar que mais pessoas caiam em situações de trabalho escravo e para que aliciadores e empregadores deste tipo de mão-de-obra sejam punidos?
ACR – Existe uma série de tratativas que são realizadas para inibir esse tipo de situação. Temos que ressaltar do Grupo Móvel de Erradicação do Trabalho Escravo, que é coordenado pelo Ministério do Trabalho e Emprego e integra o Ministério Público do Trabalho. Esse grupo vai às fazendas e constata a ocorrência do trabalho escravo. Há também, em decorrência da própria relação do Ministério do Trabalho e Emprego, as multas administrativas pelas infrações das leis trabalhistas, depois aparece ainda a atuação do Ministério Público do Trabalho, que ajusta as estrutura existentes para estas ficarem dentro das leis. Há a parte penal, que é a atuação da Polícia Federal e dos inquéritos e a parte cível, uma forma de ter repercussões econômicas na atuação dos empregadores que detenham esse tipo de atividade. Neste caso temos a lista negra do trabalho escravo, a fim de que os frigoríficos não adquiram gado desses locais. Por fim, existe a parte de informação, para conscientizar sobre os direitos dos empregados.
CC- Desde 2004, o Ministério do Trabalho mantém a “lista suja do trabalho escravo”, que incluiu nomes de empregadores flagrados na contratação e manutenção de funcionários nesta situação. Como essa iniciativa é avaliada, tem resultados eficientes?
ACR – Recentemente foi feito um termo de compromisso com os frigoríficos da região para não comprarem gado oriundo das fazendas com trabalho escravo, uma medida muito útil para fazer esses empregadores sofrerem no bolso. No Estado do Pará há uma listagem destas fazendas e os frigoríficos não compram destes locais.
CC – Como a fiscalização é feita em propriedades presentes na “lista suja”? Há um retorno mais frequente? No caso de reincidência neste crime, quais as punições cabíveis para esses empregadores?
ACR – Todas as investigações são feitas com base em denúncias, não há uma rotina de revisitação. O que pode acontecer, e já ocorreu diversas vezes, é recebermos novas denúncias da mesma fazenda. Nesse caso é feita uma nova diligência, que vai agravar as multas e pode caracterizar uma maior culpabilidade do réu em uma ação penal, o que vai implicar em uma condenação mais grave.
CC – As fazenda que entra na lista suja não pode adquirir crédito em instituições públicas ou privadas e para sair dela, deve provar por dois anos que seguiu as exigências do Ministério do Trabalho. Uma vez nesta lista, essas fazendas colaboram e se adequam às leis para serem retiradas?
ACR – Algumas das fazendas acabam não indo parar na lista suja, porque já tentam resolver a situação no momento da autuação. A equipe faz a autuação é dá um prazo de uma semana para que eles mudem. Às vezes eles se adequam às normas trabalhistas, a maioria das fazenda muda.
CC – Desde 2008, o número de trabalhadores resgatados no Pará vem diminuindo, assim como o número de estabelecimentos fiscalizados, segundo dados do Ministério do Trabalho. Essa queda acontece pelo fato das ocorrências estarem diminuindo ou a fiscalização ainda é falha?
ACR – É perceptível que há uma diminuição de casos constatados, agora quanto à quantidade de denúncias não existe um dado estatístico para dizer que estão diminuindo. As denúncias são averiguadas, não há um prejuízo na fiscalização. Esse quadro pode ser uma constatação de menor número de denuncias por parte dos trabalhadores, ou até mesmo uma diminuição neste tipo de condição. Os tipos de situações encontradas já não são mais em grandes fazendas, o que posso dizer com precisão é que existe uma percepção do judiciário que busca cada vez mais uma sensibilização ou melhoria na análise social. A partir do momento em que há sentenças condenando esse tipo de crime, isso repercute na sociedade.
Da Carta Capital