Governo Alckmin comemora ser o que mais prende no Brasil: 200 mil para 100 mil vagas
Prisões superlotadas em São Paulo: em vez de políticas públicas, força policial e violência
Nota da Secretaria de Administração Penitenciária paulista aponta 41 mil prisões em quatro anos, expondo fracasso de políticas sociais
Uma estatística que soa preocupante para boa parte da população desperta suspiros de alegria no Palácio dos Bandeirantes. Passados 19 anos de governo do PSDB em São Paulo, a gestão Geraldo Alckmin se orgulha em dizer que “o aumento da população prisional é fruto da política séria”, que consiste “em coibir e combater a ação criminosa. São Paulo conta hoje com a polícia que mais prende no Brasil”, sem que isso indique problemas sérios na execução de políticas sociais.
Em quatro anos, o estado ganhou 41.811 presos – “uma média de 37,46 presos ao dia”, orgulha-se informe da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) enviado à RBA para responder a informações sobre a população carcerária paulista. A resposta menospreza a superlotação, vista como um problema nacional, e desconsidera também a falta de atendimento educacional e as doenças surgidas das más condições de vida dentro das unidades. Se preferir outra base de cálculo, o cidadão saberá que “nos três primeiros anos de gestão Alckmin (2011 a 2013), a média de crescimento ficou em cerca de 12 mil detentos ao ano”.
A mais recente atualização da secretaria sobre a população carcerária em São Paulo é de 20 janeiro. O estado tem 106.575 vagas, mas mantém 205.467 pessoas presas, praticamente o dobro. Segundo a SAP, entre 1º de janeiro de 2011 e 20 de janeiro de 2014, a população carcerária do estado de São Paulo aumentou em 41.811 presos, uma média de 37,46 encarcerados por dia.
Para a socióloga Maria Victoria Benevides, os dados demonstram a falência de outras áreas, como educação, saúde, moradia. “Esse critério para avaliar a qualidade do nosso sistema penitenciário não poderia ser pior. Nós falamos tanto que aqui viceja a impunidade, mas, realmente, a impunidade se dá para determinados crimes e determinadas classes sociais. Para enfrentar isso tem de haver reformas estruturais.”
O coordenador nacional da Pastoral Carcerária, padre Valdir João Silveira, também avalia que o estado prende mais porque sofre de ineficiência na área social. “A nossa população carcerária é sempre a população mais pobre, mais miserável da sociedade. Lá onde o estado não trabalhou e estiveram ausentes as políticas públicas mínimas e necessárias, o estado responde sempre com a força policial, com a repressão. Joga no presídio e continua a mesma ausência de políticas”, afirmou.
A situação é pior nos 41 Centros de Detenção Provisória (CDP) em que a população, em muitos casos, chega ao triplo da capacidade do local. Os CDP I e II de Osasco, por exemplo, podem abrigar até 768 presos cada um, mas têm 2.655 e 2.664, respectivamente. O único CDP com menos presos do que a capacidade é o de Riolândia, que tem 443 pessoas em um espaço para 768. Os outros 38 estão superlotados.
Essa situação nos CDPs evidencia outro problema: a prisão sem julgamento. “O aumento das prisões não significa que a polícia está sendo eficiente. Temos de avaliar esse dado em comparação com o número de processos que chegaram a termo”, avalia Maria Victoria. Hoje, no Tribunal de Justiça de São Paulo, ao menos 25 mil processos aguardam andamento na Justiça Criminal.
O resultado são celas com pessoas dormindo no chão, ambiente propício à transmissão de doenças, violência e revolta. “Por si só é um problema absolutamente grave. Esse número é assustador comparado com outros países. As pessoas não têm lugar para dormir ou para realizar qualquer atividade mínima nas celas. E esse problema abre caminho para vários outros”, diz Patrick Lemos Cacicedo, coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
A solução apontada pela secretaria é a construção de mais presídios. “O estado vem dando andamento ao Plano de Expansão de Unidades Prisionais, que prevê a construção de 49 novas unidades, criando cerca de 42 mil novas vagas. Desses, 14 já foram inaugurados.”
No entanto, se somente em três anos, como informou a secretaria, quase 42 mil presos ingressaram no sistema, é pouco provável que a expansão resulte em melhoria. “Aumentaram os presídios e a superlotação continua no mesmo nível. Quanto mais se constrói, mais prisões acontecem. É preciso repensar a política inteira”, afirma padre Valdir.
“Alguns presídios de São Paulo estão mais superlotados do que o de Pedrinhas, no Maranhão, por exemplo”, completa Caciedo. Neste começo de ano, como costuma acontecer em outros momentos, Pedrinhas se tornou o símbolo da má administração do sistema prisional no país. Dominado por facções criminosas, vítima de uma onda de violência com rebeliões e decapitações, o presídio registrou 59 mortes somente em 2013.
“Aqui em São Paulo, a média anual de mortes está em 495 por ano nos últimos dez anos”, contabiliza padre Valdir, apresentando dados obtidos por um juiz corregedor do Tribunal de Justiça de São Paulo junto à secretaria. “São mortes por doenças ou ferimentos que não recebem atendimento adequado”, pontua.
O que leva a mais um grave problema dentro do sistema penitenciário paulista. Segundo padre Valdir e Caciedo, na maioria dos estabelecimentos prisionais as equipes médicas são insuficientes para atender à população. “Em São Paulo, na maioria dos estabelecimentos prisionais não há equipe médica mínima para atender a essa população. Médicos, enfermeiros, nada. Isso em um ambiente que é propicio à transmissão de doenças. Uma cela superlotada, respirando o mesmo ar, um calor infernal ou um frio intenso”, afirma Caciedo.
Para piorar, em vários presídios há racionamento de água. “A água é liberada por pouquíssimos minutos por dia, cerca de quatro ou cinco vezes. Uma cela que deveria ter oito e tem 40, e nem sequer tem água”, afirmou. A secretaria admite que restringe o acesso à água, sob justificativa de evitar desperdício, além de possuir presídios em regiões que sofrem com problemas de abastecimento – sem, no entanto, especificar que localidades padecem desta escassez.
Outro problema é o fornecimento de itens básicos de higiene pessoal, como escovas de dente, sabonetes e absorventes íntimos, que praticamente inexiste. Nos presídios femininos, detentas usam miolo de pão como absorvente. Existe um acordo entre a Defensoria Pública e o governo estadual para a regularização da situação, celebrado em agosto do ano passado. A gestão Alckmin está dentro do período de adequação, que vai até abril, e ainda não efetivou o fornecimento para todos os presos.
Soluções paralelas
Além das questões humanitárias, Caciedo acredita que a superlotação e a precariedade podem abrir caminho para soluções paralelas ao Estado. “Toda pessoa presa em São Paulo neste momento está sendo torturada, ao menos, psicologicamente. Quanto mais você degrada as pessoas que estão presas, quanto piores as condições de aprisionamento, mais fortes ficam as organizações criminosas.”
Para padre Valdir, esta não é uma questão colocada para o futuro. “O sistema prisional do Brasil está entregue nas mãos dos presos. Tem diretor, sim, mas você tem que seguir o que os presos internamente combinam. Também há poucos funcionários. E assim, os presídios não têm condições de ressocializar pessoas. Em São Paulo não é diferente.”
A SAP nega veementemente que a situação ocorra, e diz que monitora e vigia, em parceria com a Secretaria da Segurança Pública, essas facções, “sendo, portanto, absolutamente mentirosa a afirmação de que o crime organizado teria domínio nas prisões paulistas ou que interfere na decisão administrativa de qualquer unidade penal”.
No entanto, a secretaria acaba por admitir uma situação que contradiz o enfrentamento das organizações criminosas. A nota enviada à RBA informa que somente neste ano serão instalados bloqueadores de celulares em presídios onde estão líderes de facções e presos de alta periculosidade. E que serão abrangidas 23 das 77 unidades. O que significa que até hoje, mesmo com todos os casos de ataques criminosos que o estado sofreu, sobretudo em 2006 e 2012, não houve investimentos nessa área.
Ressocializar é impossível
Outras áreas abandonadas dentro do sistema prisional são educação e trabalho. De acordo com os especialista ouvidos, a situação de precariedade é a mesma do restante do sistema e os programas existentes atendem a uma parcela ínfima da população carcerária.
A Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel de Amparo ao Preso (Funap), que oferece cursos voltados, principalmente, para o empreendedorismo, como mecânico de caminhões, serralheiros, artesãos, eletricistas e cursos em geral na área da construção civil, realizou 6.478 atendimentos em 2013, o que abrange cerca de 3% de toda população carcerária. A SAP informa que metade da população dos presídios efetua “trabalhos laboterápicos” dentro das próprias unidades, como lavanderia, alimentação, manutenção e cozinha, entre outros.
No caso da educação, a parceria com a Secretaria Estadual da Educação atendeu a 11.547 presos em 2013, próximo de 6% do total. A ação mais abrangente dentro do sistema é a do Programa de Educação para o Trabalho e Cidadania (PET): De Olho no Futuro, que em 2013 realizou 28.314 atendimentos. Porém, este é um programa apenas de orientação e não tem caráter profissionalizante.
Para o defensor Caciedo, os números são ínfimos para se afirmar que há um trabalho sendo desenvolvido com os presos. “Não há uma política educacional efetiva em São Paulo. E ainda se utiliza de presos-monitores em muitos casos, ou seja, sem a presença de um educador qualificado. Além disso, a superlotação também prejudica essa área porque não há espaço físico para realizar as atividades. A situação se reflete nas ações de profissionalização.”
Ao egresso do sistema prisional, a SAP oferece o Programa de Atenção ao Egresso e Família, com atendimento psicossocial e de saúde, capacitação profissional, geração de renda e regularização de documentos. No entanto, na Grande São Paulo, a única unidade deste tipo fica no centro da capital. Em todo o estado são 28 centros de atendimento.
“Não há qualquer programa de reinserção para a pessoa que sai do sistema prisional, um acompanhamento real ou preparação para as pessoas conseguirem emprego. Inclusive a falta de apoio ao egresso é uma situação que deixa a pessoa em extrema situação de vulnerabilidade, o que pode ser um fator determinante para a reincidência no crime”, avalia padre Valdir.
Problema histórico
Todos os problemas apontados pelos especialistas e pela própria Secretaria de Administração Penitenciária à reportagem da RBA não são novos. Inspeções feitas no sistema prisional de São Paulo na última década demonstram que a má situação das penitenciárias paulistas não só não mudou nesse período como se intensificou.
Para Caciedo, os relatórios chegam a ser repetitivos, pois a situação parece destinada a ser ruim. “A única diferença entre hoje e há dez anos atrás é que piorou. Não se vê no horizonte qualquer perspectiva de melhora. Se tem como política prender mais e mais e construir mais presídios. É uma solução que tem sido aplicada há décadas e que é comprovadamente ineficaz.”
A partir de relatórios da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Prisional na Assembleia Legislativa de São Paulo, que concluiu os trabalhos em 2003, de uma visita do Ministério da Justiça a prisões de São Paulo em 2011 e de uma nota pública da Pastoral Carcerária divulgada em 2012, a reportagem da RBA compilou relatos de infraestrutura precária, despreparo de carcereiros e dirigentes, desrespeito aos direitos humanos e omissão do estado na solução desses problemas.
A CPI do Sistema Prisional, que realizou diligências às unidades prisionais e consultou especialistas para traçar um diagnóstico da administração penitenciária no estado, apontava um déficit de 25 mil vagas em 2003 e um quadro caótico: domínio das facções criminosas sobre a administração das unidades prisionais e más condições da alimentação e de atendimento de saúde aos detentos.
À época, a CPI considerou necessária a criação de 38 mil vagas até 2005, com a construção de 21 penitenciárias e 30 Centros de Detenção Provisória (CDPs), além da revisão de processos para transferência de presos para os regimes aberto ou semiaberto como medidas essenciais para melhorar as condições das cadeias paulistas.
No período entre 2003 e 2005, no entanto, o governo estadual inaugurou apenas 10 CDPs e 13 penitenciárias, com um total de 17,2 mil vagas, metade do indicado pelo relatório da Assembleia Legislativa.
A nota pública da Pastoral Carcerária, publicada em maio de 2012, demonstra que o problema continua: o déficit de vagas, pelas contas da entidade, deve chegar a 180 mil em 2015, mesmo com o plano do governo estadual de inaugurar 42 mil novas vagas até o fim do ano que vem.
A entidade argumenta que apenas abrir vagas não é suficiente, e demonstra que os problemas constatados em 2003 continuam os mesmos: “Apenas 8% dos detentos têm acesso a alguma forma de educação; somente 12% exercem atividade remunerada; o serviço de saúde é manifestamente frágil, com quadro técnico incompleto e diversos casos de graves doenças e até de óbitos oriundos de negligência; em celas onde cabem apenas 12 aglutinam-se mais de 40 pessoas”, expõe o texto.
O relatório feito pelo Ministério da Justiça em 2011, com base em visitas feitas entre fevereiro e maio, ressalta graves irregularidades no cumprimento das penas: foram constatados inúmeros casos de detentos provisórios alojados com detentos já condenados; o inverso também é um problema: presos já condenados protestaram com os representantes do Ministério para serem retirados dos CDPs, onde a superlotação é pior, para o início do cumprimento da pena em presídio.
A vistoria flagrou ainda homens e mulheres dividindo a mesma unidade prisional: na Cadeia Pública de Batatais, a situação permaneceu assim até 2010.
Para a Cadeia Pública de Osasco, a única solução apontada pelo Ministério da Justiça seria a interdição da unidade, por conta do ambiente insalubre para detentos e funcionários da delegacia seccional. Apesar de o aviso ter sido dado há três anos, a unidade segue em funcionamento. Segundo padre Valdir, em todo o estado ainda há pelo menos 4 mil presos em cadeias públicas.
Da Rede Brasil Atual