Humilhação e pressão no trabalho não são questões individuais, mas da empresa

Competitividade e sobrecarga transformam trabalhador em ´colaborador´, para que ele internalize a missão da empresa como sua. Fiscalização do trabalho ainda está despreparada a lidar com o assédio moral

Para quem ainda pensa que a prática do assédio moral depende, antes de tudo, da rudeza de caráter de superiores capazes de humilhar subordinados em público, essa hipótese é categoricamente descartada por especialistas. A truculência das chefias é apenas uma espécie de condutor dessa prática, cada vez mais denunciada no mundo do trabalho. O fator gerador é, antes de tudo, a forma como o trabalho é organizado e como são traçados os objetivos a serem alcançados por sua excelência, a empresa.

É essa a avaliação dos participantes do 1º Ciclo de Debates Sobre Assédio Moral e Discriminação nas Relações do Trabalho, evento promovido ontem (18) pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE-SP). Na visão dos estudiosos dedicados ao tema, o modelo de organização administrativa dificulta que o assedio moral seja visto como uma causa organizacional e institucional. E a visão individualizada do problema, com um fenômeno entre uma “vítima” e um “agressor”, dificulta seu combate.

Muitos trabalhadores hoje são chamados de “colaboradores”, que passam a internalizar a missão da empresa como sua também, tendo como estímulo a competitividade e o cumprimento de metas, em um modelo de gerenciamento apoiado por ameaças, injúrias e a promoção do medo.

“Quando digo que o assédio é individual eu não faço um movimento para entender a lógica organizacional e com isso estou beneficiando alguém. É tudo de bom para uma empresa dizer que o Antonio assediou a Maria. Cuidado com essas armadilhas. É necessário fazer um esforço para pensar que organização é essa, temos necessidade de entender isso”, afirma a médica Margarida Barreto, doutora e professora convidada da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

Um ambiente de trabalho que pressiona mais, onde as condições são cada vez mais precárias é a marca, não só por questão de salário baixo mas pela sobrecarga do trabalho e por pressão intensa por produção, é o que favorece que a característica assediadora se sobressaia. “O cumprimento de metas criou uma reorganização do ambiente de trabalho nos últimos anos, que reestrutura e demite pessoas. Quem fica, internaliza essa lógica e passa a lutar pela manutenção do seu emprego, numa competição contra o inimigo”, afirma a pesquisadora.

Para o sociólogo Angelo Soares, professor da Universidade de Quebec, no Canadá, os problemas de assédio moral e de saúde mental são vividos não por conta da fragilidade das pessoas, mas por causa das transformações dos últimos 30 anos nas organizações e na sociedade. Soares é autor de uma pesquisa com diferentes grupos de trabalhadores – engenheiros, técnicos, funcionários de prefeituras, professores, trabalhadores de escritório e estivadores.

O resultado apresenta ingredientes básicos que encorajam e toleram essa violência. A falta de justiça organizacional no ambiente de trabalho, de respeito, reconhecimento, confiança e cooperação, assim como a coesão do grupo e a sobrecarga de trabalho, são as principais variáveis para que aconteça o assédio moral. Resultando em pessoas assediadas que trabalham mais horas sem pausas, ou com intervalos rápidos para cumprir todo o trabalho na jornada, por medo de perder o emprego.

Para ele os métodos de gestão que são colocados hoje, para motivar a competição entre as pessoas, causa individualismo e provoca uma estratégia perdedora. “O que dá uma boa produtividade está relacionado à visão de coletivo. Em vez de fazer com que as pessoas trabalhem juntas, estimula-se a competição, que vai na direção contrária, com o único objetivo de se conseguir mais dinheiro”, afirma.

“A violência no trabalho é um reflexo de uma sociedade doentia que preza muito mais as mercadorias do que as pessoas e que educa crianças e adolescentes a pensar assim desde pequenos”, critica o doutor em Psicologia José Roberto Heloani. Para ele, é necessário mexer com a essência e a forma de organização no trabalho, e descartar o assédio como questão pessoal. “Trocar o assediador não vai resolver nada, isso não mexe com a forma de organização do trabalho. É o perigo que existe de colocar o assédio como uma questão pessoal e individual e negar a essência do problema.”

O problema não está relacionado a uma suposta fragilidade do indivíduo. A médica Margarida Barreto destaca que as estatísticas com índice de depressão sobem cada vez mais no país. “Depois da LER/Dort, quando o corpo gritou, hoje é o assédio moral e a cabeça que gritam.”

Não há lei para combater o assédio moral no Brasil. Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego, das denúncias recebidas em 2012, 87% eram de assédio moral. Empresas de telemarketing, comércio (grandes redes de supermercados) e setores de serviços e limpeza, ocupam os três primeiros lugares no ranking de empresas denunciadas.

A auditora fiscal Luciana Veloso Baruki, mestre em direito político e econômico do trabalho, afirma que ainda são poucos os auditores especializados no assunto, na SRTE/SP. “O número de denúncias aumenta a cada dia, mas ainda são poucas as pessoas atuando na área, que geralmente são movidas por um interesse pessoal.”

Luciana destaca casos de assédio como uma forma “estratégica” do modelo, quando a perseguição é conveniente, com o objetivo de desestruturar o trabalhador e fazer com que ele peça demissão, muitas vezes deixando-o de lado de suas atividades, colocando-o na “geladeira”. “Essa é a pior forma de humilhação. Já tentei resolver problemas de assédio moral em que pessoas estavam nessas circunstancias e algumas vezes o resultado é o pagamento de uma multa por danos morais, de valor irrisório, que não paga o prejuízo e a marca que a pessoa ganha para sempre”, disse.

“Combater o problema é difícil, ainda mais se pensarmos num empresariado avesso a lucros de longo prazo. Mas é um compromisso que devemos ter com o trabalhador, com a sociedade. Pensar num mundo de trabalho justo, pessoas vistas como pessoas e não como produto”, afirma Heloani.

“Esse é um estudo relativamente novo, essas palestras servem de guia para nossas ações, afinal vivemos em uma democracia onde ninguém pode assediar ninguém, ninguém pode impedir a carreira de uma pessoa dessa maneira”, disse o superintendente regional do Trabalho e Emprego em São Paulo, Luiz Antônio de Medeiros.

 

Da Rede Brasil Atual