Imprensa contra governos populares: uma luta antiga e recorrente
A campanha eleitoral de 2010 foi marcada por um intenso debate entre o governo federal e alguns dos maiores meios de comunicação brasileiros. De um lado, o presidente Lula se queixou que certos veículos agiram como partidos políticos; de outro, o chefe de Estado, seu governo e seu partido foram acusados de atentar contra a liberdade de imprensa.
Engana-se, porém, quem acha que essa é uma situação inédita em nossa história republicana. Lançado recentemente, o livro A Rede da Democracia – O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil na Queda do Governo Goulart, do historiador e cientista político Aloysio Castelo de Carvalho, mostra, justamente, como o embate entre o governo de João Goulart e alguns órgãos de imprensa esteve no centro do enfrentamento ideológico que levaria ao golpe militar de 1964.
No intuito de situar a discussão atual em um contexto mais amplo, História Viva conversou com o pesquisador para saber o que aproxima e o que difere o embate atual dos enfrentamentos do passado entre mídia e poder no Brasil.
História Viva: As eleições presidenciais de 2010 foram marcadas por um embate entre alguns órgãos de imprensa e o governo federal. Essa é uma situação nova ou trata-se de um tema recorrente na história republicana do país?
Aloysio Castelo de Carvalho: O embate entre alguns órgãos de imprensa e o governo federal é um tema recorrente no ambiente democrático, que tem mais repercussão nos períodos eleitorais, sobretudo quando um governo com alto índice de aceitação na opinião popular pretende dar continuidade aos seus projetos. Os governos de Getúlio Vargas (1951-54), de João Goulart (1961-964) e agora o de Lula são exemplos desse tipo de conflito, no qual a imprensa de natureza privada coloca em questão decisões políticas que podem favorecer os interesses populares.
História Viva: A maior parte dos meios de comunicação brasileiros hoje se apresenta como intérprete imparcial e neutro da opinião pública. Isso sempre foi assim ou já houve épocas em que os veículos assumiam abertamente suas posições políticas?
Aloysio: No período democrático de 1945 a 1964, os diversos setores da imprensa assumiam abertamente suas preferências eleitorais, diferentemente da dissimulação que ocorre hoje em dia, baseada na ideia da objetividade jornalística. Por outro lado, os atores políticos, entre eles a própria imprensa, eram muito menos comprometidos com a estabilidade democrática. O clima de radicalização e golpes era uma constante no processo político.
História Viva: Em seu livro, o senhor afirma que o discurso da defesa da liberdade de imprensa nem sempre é neutro, e às vezes pode ser a expressão de um determinado projeto político que historicamente orientou a maior parte dos veículos de comunicação do país. Que projeto é esse?
Aloysio: A liberdade de imprensa é um dos direitos do indivíduo, já que o cidadão precisa ser informado. É uma conquista democrática manter esse direito. No passado recente no Brasil, durante a ditadura militar, perdemos parte desses direitos e foi preciso muita luta para reconquistá-los. Portanto, a liberdade de imprensa deve fazer parte de todos os projetos políticos comprometidos com a ampliação da democracia. O problema ocorre quando em nome desse direito pretende-se remover governos cujos projetos políticos são comprometidos com o questionamento da propriedade privada.
Durante a administração de João Goulart não havia nenhuma restrição ao trabalho dos meios de comunicação e o governo foi submetido a uma intensa campanha em favor da liberdade de imprensa. É um paradoxo, pois a existência de uma campanha indica que havia liberdade para realizá-la. Então, o que estava em jogo não era a liberdade de imprensa, mas a questão da propriedade privada, sobretudo no campo, vinculada ao debate da reforma agrária.
O governo Lula tem muito menos comprometimento com o questionamento da propriedade privada do que o governo Goulart e está sob ataque da imprensa que se vê ameaçada em sua liberdade, já que colocou em pauta o controle social da mídia. Se a liberdade de imprensa pode de fato ser ameaçada pelos governos, ela também corre riscos com o poder dos monopólios privados de comunicação, que impedem vozes e interesses de se expressarem. Adam Smith tinha menos receio do governo em relação ao funcionamento do mercado livre do que dos arranjos dos empreendedores privados voltados para controlar os preços com o objetivo de aumentarem seus lucros.
História Viva: O senhor mostra também que, em momentos de polarização política, o discurso da imprensa liberal buscou distinguir duas formas de mobilização popular: uma legítima, da qual seria a representante, e outra ilegítima. Quais seriam essas duas formas de mobilização? O que difere uma da outra?
Aloysio: Na pesquisa refiro-me a determinados setores da imprensa, em particular aos jornais O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil, definidos como liberais conservadores. Esses veículos defendiam a participação política por meio das instituições vigentes, que estavam sendo questionadas pelos setores da esquerda trabalhista e comunista, defensores de mobilizações diretas como forma de pressionar a sociedade e governo em favor das reformas sociais.
Na visão liberal, essas ações são consideradas ilegítimas, pois prescindem dos debates e argumentações racionais que caracterizam as instituições parlamentares e que seriam próprios também da imprensa. As mobilizações diretas defendidas pelas esquerdas são consideradas pelos liberais formas de coação que precisam ser contidas pelo poder vigente.
História Viva: Ao tratar do papel da imprensa liberal na crise que levou à destituição do presidente João Goulart, em 1964, seu livro mostra que vários veículos agiram como atores políticos, atuando como porta-vozes de grupos partidários. Nas últimas eleições o presidente Lula acusou parte da imprensa de agir como partido político. A crítica do presidente se justifica? Existem semelhanças no comportamento da imprensa liberal nos dois episódios?
Aloysio: O fato de agirem como atores políticos não significa que os veículos agiam como porta-vozes de grupos partidários, embora houvesse correspondência entre os projetos políticos de representantes da imprensa e partidos de oposição ao governo Goulart. Argumento que a imprensa disputa com os partidos a hegemonia sobre a representação da opinião pública. Ela pode compartilhar valores, mas no processo competitivo da democracia adquire uma visão própria do seu papel.
Na crise política de 1964, alguns órgãos jornalísticos como O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil atribuíram à própria imprensa o papel de autêntica representante da opinião pública, com base na percepção de que o Congresso estava paralisado politicamente e não agia para conter as propostas de reformas do Executivo que ameaçavam a propriedade privada.
História Viva: Existe pluralidade ideológica na imprensa brasileira? Isso sempre foi assim ou houve mudanças nos padrões de alinhamento político dos veículos de comunicação do país ao longo do século 20?
Aloysio: A dificuldade de se vivenciar uma pluralidade ideológica não parece ser uma característica do atual momento. Vejamos, por exemplo, a opinião de Mino Carta publicada na revista Carta Capital em setembro. Quando se refere ao período eleitoral que acabamos de viver, ele sustenta que “a campanha midiática a favor do candidato tucano não é digna do país que o Brasil merece ser, e sim adequada ao manicômio”. Segundo o jornalista, “a união da mídia já produziu alguns entre os piores momentos da história brasileira.”
Ele cita como exemplo a morte de Getúlio Vargas, presidente eleito; a resistência a Juscelino Kubitschek; o golpe de 1964; a oposição à campanha das “Diretas Já”, além do apoio maciço à candidatura de Fernando Collor, à reeleição de Fernando Henrique e às privatizações vergonhosamente manipuladas. Trata-se, portanto, de um longo período histórico de hegemonia dos representantes da imprensa liberal conservadora que resistem em se adequar à convivência das regras democráticas.
Da Revista História Viva (Bruno Fiuza), copiado do Portal Vermelho