Indústria pode sair da crise melhor do que está, diz especialista

O economista David Kupfer, diretor de Pós-Graduação do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), maiores especialistas em indústria no Brasil, analisa que a crise no setor financeiro é que contagia o sistema industrial. "Temos uma economia que está em boa situação e empresas - esta é que é a grande novidade - em situação desfavorável"

Preservar ao máximo a demanda interna, os investimentos e os avanços no mercado de trabalho, contando para isso com uma política fiscal compensatória, à semelhança do que vêm fazendo outros países, com ênfase na melhoria da infra-estrutura para ganhar mais competitividade no período pós-crise. Resumidamente, esta é a visão do economista David Kupfer, diretor de Pós-Graduação do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), do caminho que deve tomar a política econômica brasileira neste período de crise para evitar uma queda drástica da produção industrial e permitir que ela conquiste mais espaços na saída.

Kupfer, um dos maiores especialistas em indústria no Brasil, acha que vai haver demissões no setor, até porque ajustar por meio de cortes “está na alma da indústria brasileira”. Mas ressaltou que se a política econômica tomar o rumo correto, “após um período de sacolejo”, a indústria brasileira “vai estar em uma trajetória crescente e melhor do que estava antes”.
Ele ressaltou que o sistema financeiro, estatal e privado, está sadio para financiar a manutenção da atividade, evitando queda drástica do nível de atividade e disse que a atual situação tem a vantagem de livrar a indústria de dificuldades que estavam mascaradas pela forte demanda mundial, como o câmbio sobrevalorizado e a taxa de juros excessivamente alta.
Para ele, os investimentos em exploração de petróleo no pré-sal serão decisivos, tanto na estratégia de manutenção da atividade como para gerar uma cadeia produtiva de vanguarda no Brasil. Ele adverte, no entanto, que tudo será posto a perder se a crise mergulhar o mundo em uma nova onda de protecionismo. A seguir os principais trechos da entrevista.
Valor: Como será o impacto na indústria, não só no curto prazo, mas ao longo do tempo, dessa crise? Vai haver reestruturação?
David Kupfer: A fumaça não baixou ainda. Não há tempo para enxergar. Ainda estamos naquele rescaldo após o incêndio. Eu acho, primeiro que, de fato, é uma situação muito atípica. Nós estamos acostumados, historicamente, a crises na economia brasileira. As empresas entram em situação de crise em função do comportamento da economia. Desta vez a economia está bem e as empresas é que estão com problemas. Isto é muito raro na história econômica brasileira. No plano internacional, então, nem pensar. Na verdade é uma crise no setor financeiro que contagia a o sistema industrial. Temos uma economia que está em boa situação e empresas – esta é que é a grande novidade – em situação desfavorável. Então, eu posso imaginar que uma abordagem setorial não vai caber muito bem na montagem de perspectivas. A questão não é tanto da indústria X. São empresas da indústria X que estavam alavancadas, empresas que perderam muito com seus derivativos, ou não perderam muito, e tal. Não é que eu esteja vendo um futuro otimista. O futuro é preocupante. Mas temos que levar em conta que, olhando o longo prazo, a indústria brasileira também não estava percorrendo uma trajetória exuberante. A gente estava em uma espécie de armadilha. Nessa armadilha havia um conjunto de preços básicos na economia brasileira que estava pouco favorável à atividade industrial, uma taxa de juros elevada, o que dificulta o investimento, as operações financeiras e a atividade corrente das empresas. Tínhamos uma taxa de câmbio valorizada, o que dificulta a formação de receitas por parte das empresas exportadoras. E, muito importante – ninguém dá bola para isso -, a taxa de câmbio valorizada comprime excessivamente a margem de lucro das empresas voltadas para o mercado interno.
Valor: Por causa da concorrência internacional?
Kupfer: Exatamente. Tínhamos também um preço de energia crescente, um preço de infra-estrutura crescente. Então, havia uma situação que projetava uma trajetória difícil para a indústria. Ela estava sendo carregada por uma bonança internacional que, agora percebemos, era muito mais uma bolha. Portanto, aquilo iria cair mais cedo ou mais tarde. O que é que iria cair? Uma trajetória de desenvolvimento da indústria que, de fato estava permitindo um ganho excelente das empresas de grande porte que tinham ativos financeiros importantes. As empresas estavam, fundamentalmente, tornando-se agentes financeiros. Usavam seus caixas para fazer operações. O câmbio valorizando abria espaço para arbitrar. Sob o ponto de vista da competitividade, do ponto de vista estrutural, não estávamos percebendo um avanço importante da indústria. Setores tradicionais estavam ficando para trás. Com muita dificuldade para acompanhar o aumento da atividade e a modernização requeridos para a manutenção da competitividade. Os setores mais intensivos em progresso técnico estavam enfrentando dificuldades crescentes, nos gastos, nas decisões de inovação etc. Tínhamos uma indústria de commodities que ia muito bem e que aos poucos estava ganhando peso excessivo na indústria brasileira, a ponto de muitos enxergarem processos de reprimarização e de desindustrialização aberta no Brasil, o que eu achava que ainda não tinha acontecido, embora talvez viesse até a acontecer.
Valor: Esse risco acabou?
Kupfer: Eu acho que é preciso ter esta perspectiva para dizer o seguinte: aquela armadilha foi quebrada, certo? A taxa de câmbio foi para um outro nível. Esse nível é mais favorável para o desenvolvimento industrial. E eu acho que a taxa de juros vai baixar. O que entra em questão de fato é o seguinte: como é que vai ser trabalhado pela política econômica a preservação de níveis de demanda efetivos. Isso é uma incógnita porque depende de decisões políticas que, no caso brasileiro, costumam ser muito ideologizadas. De cara, começa a discussão sobre se a política fiscal tem que ser anticíclica ou pro-cíclica. E a política fiscal não está obrigada a ser nada. Não é um manual que está sendo escrito. A política fiscal tem que ser aquilo que seja mais adequado para uma visão de longo prazo, estratégica, e tal. E, neste caso, o mundo inteiro está sinalizando aderir a uma política fiscal compensatória da redução da demanda. Acho que o Brasil deve ir no mesmo rumo. Se a gente aderir a uma política dessa natureza e conseguir segurar a demanda um pouco, acredito que a resposta industrial vai ser satisfatória. Após um período de sacolejo, vamos estar em uma trajetória crescente e melhor do que estava antes.
Valor: Essa política compensatória deve vir pela via do investimento público?
Kupfer: Se fôssemos asiáticos, o que estaríamos raciocinando? A gente vai passar por um período com menos pressão para produzir, porque a demanda internacional é menor. Então, vamos dedicar esse período a melhorar as condições de infra-estrutura, avançar em um projeto que reduza o custo industrial. É uma tática de países asiáticos, particularmente, os pequenos. Toda vez que o mundo dá uma parada, eles entram em campo melhorando ainda mais a infra-estrutura. Quando o mundo volta a crescer, estão ainda mais bem posicionados para conquistar fatias crescentes da expansão do comércio. A gente teria que ter um pouco essa lógica. Algumas pessoas questionam dizendo que o investimento em infra-estrutura não vai ser mais tão necessário, porque as exportações não irão mais crescer tanto. Mas qualquer um reconhece que a infra-estrutura existente no Brasil não é adequada para o nível de exportação que nós temos. Então, mesmo que as exportações parem, a gente tem um déficit de infra-estrutura importante. Acho que precisaria também botar mais celeridade na definição dos marcos regulatórios, que entravam parte desse investimento, destinar mais recursos lá do Programa Piloto de Investimento (PPI), reforçar e fazer o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) andar mais rápido. Enfim, esse é um caminho natural para manter a economia em funcionamento e produzir mais competitividade no momento seguinte. Depois, acho importante que a melhora do mercado de trabalho seja preservada. Isso pressupõe algum tipo de ação de política industrial, visando uma contrapartida em manutenção de produção e emprego, adiando ou reduzindo imposições tributárias e tal. Isso não é propriamente política industrial, porque política industrial emergencial não existe, mas é usar uma política econômica que pactue para evitar desemprego excessivo, ou desemprego desnecessário, porque isso (desemprego) vai existir.
Valor: Por quê?
Kupfer: Primeiro, porque está na alma da indústria brasileira. Ela apanhou tanto que tem uma capacidade de ajuste tremenda. Só que ela ajusta enxugando emprego. Então, todo o processo de reformalização (do emprego) vai precarizar de novo com uma rapidez enorme, aquelas terceirizações precarizadoras e tal. Então, deve haver uma ação pública para tentar impedir esse processo.
Valor: Essas linhas de capital de giro dos bancos estatais deveriam ter esse tipo de condicionante?
Kupfer: Sim. Seriam criadas metas de desempenho, de produção e de empregos. Outro ponto que eu acho importante é o fortalecimento do sistema financeiro nacional. O nosso sistema financeiro está bem. Ele mostrou que está bem, não sofreu nenhum arranhão, ao contrário, exibiu uma resposta extremamente impactante, que foi essa fusão (ItaúUnibanco). Então, a gente precisa que o sistema financeiro nacional esteja azeitado para entrar em campo e suprir o crédito de longo prazo. Porque quem mais vai sofrer (com a crise) é o investimento. Esta é uma crise de interrupção de um ciclo de expansão do investimento. Acima de tudo eu vejo assim. O PIB (Produto Interno Bruto) vai crescer menos. E o que é que vai explicar o menor crescimento do PIB? A gente passou por um período longo no qual o principal explicador do crescimento era a exportação. Até 2004. Não por acaso, o crescimento era pequeno. Querer que o Brasil cresça pela exportação é como tentar tirar alguém do chão puxando pelo cabelo. De 2004 para cá a gente inverteu e começou a ter um crescimento puxado pelos componentes domésticos da demanda, com peso grande dos investimentos. Agora, vai haver uma redução do crescimento do PIB, de 5% para 3% a 3,5%, mas o que vai parar mesmo é o investimento. Uma boa parte da explicação para a queda da taxa de crescimento vai ser a redução do investimento. E isso é indesejável. Acho que esse tem que ser o centro da visão estratégica de política econômica: preservar o ciclo de investimentos que estava em curso. Para isso é que também é necessário preservar a melhora do mercado de trabalho, para você ter um consumo mais consistente. Esse consumo mais consistente melhora as expectativas empresariais de retorno, eles mantêm os projetos de expansão, etc. Acho que estas são as questões básicas.
Valor: E se não for assim?
Kupfer: Como tudo isso depende de política, a gente pode abrir cenários. Se a política for eficaz, eu acredito que a gente vai ter redução do crescimento, uma certa reversão do investimento, mas isso vai ser digerido e, em um período de um ano, um ano e pouco, dois anos, no máximo, a gente retoma a trajetória anterior, com mais perspectivas de desenvolvimento da indústria. Agora, se fizermos uma política equivocada a gente tem muito a perder, acho que a gente pode voltar à armadilha do baixo crescimento, porque não vai ter mais o mundo puxando, e com uma deterioração das condições de distribuição de renda, enfim, da melhora no plano distributivo que vinha ocorrendo.
Valor: Qual seria essa política equivocada?
Kupfer: A política equivocada, no meu modo de ver, é buscar uma política monetária ultra-ativa, descoordenada da política fiscal, ficar a política monetária segurando e a fiscal gastando. A gente tem, nitidamente, pressões para um gasto público crescente, pelo ciclo político. Vão entrar em ano pré-eleitoral e um ano eleitoral. Enfim, esse é um cenário horrível. Uma política econômica que, no geral, mantenha a economia relativamente contraída, com receio de repiques inflacionários, uma parada mundial maior da que a esperada… você teria que enxugar cada vez mais gelo para ficar no mesmo lugar. Se a gente puder colocar mais um componente de terror, poderia ocorrer um processo de desvalorização cambial, que passaria para os preços, que gerariam uma corrida câmbio-salários, enfim, uma volta àquela estagflação da década de 1980. Não se pode correr o risco de deixar que aquilo se estabeleça novamente.
Valor: A indústria brasileira investiu em maquinário, houve um crescimento forte do setor de semi-acabados, mas, o senhor mesmo disse, a indústria tradicional sofreu tremendamente com o câmbio…
Kupfer: É, com o câmbio e com outros custos, inclusive o de salário, que é um custo desejável. Essa melhora no mercado de trabalho significa, na prática, aumento de salário médio, significa aumento do custo de salários. Essas indústrias mais tradicionais têm, além do aumento do custo de energia, de infra-estrutura, o crescimento do custo do trabalho. Então, seria importante que elas conseguissem mais produtividade para poder aguentar esse aumento. Está claro que o aumento de salários é um aumento de custos, mas é um aumento desejável.
Valor: Mas, como o senhor mesmo disse, nós não gostamos dele…
Kupfer: As empresas brasileiras odeiam custos salariais. Rapidamente elas colocam o custo salarial sob estrito controle. Porque é a variável mais à mão. Embora digam que o mercado de trabalho brasileiro é excessivamente regulamentado, na prática, ele é bastante flexível. Onde tem baixa flexibilidade é no setor público. No setor privado ele é bem flexível.
Valor: Por que o Brasil não consegue ter grandes empresas inovadoras, com algumas exceções, como a Petrobras? Isso poderia ajudar a obter ganhos em situações de retomada, não?
Kupfer: A razão histórica é que se construiu uma indústria imitadora no Brasil. A forma fácil de inovar no Brasil é esperar um pouco e imitar. Significa que você nunca vai estar na ponta, mas também nunca vai gastar dinheiro com desenvolvimento tecnológico. Eu acho que hoje estava tendo um avanço que, provavelmente, vai ser atribuído a um aumento da percepção do empresário nacional em relação à importância da tecnologia, ao aumento da ênfase da política pública na questão tecnológica.
Valor: Não é hora para repensar essas coisas nesta crise que estamos vivendo?

Kupfer: Sim, embora ache que, neste momento existe uma pressão por emergências que, provavelmente, vão dominar a alocação de recursos. Mas você precisa ter visão de longo prazo para preparar uma saída que aponte nessa direção. A propósito, temos uma característica deste momento histórico que se chama Petrobras. A Petrobras é importantíssima no investimento do Brasil e esse investimento Petrobras não depende muito de nada do que aconteceu nessa grande confusão mundial. A menos que, de fato, o preço do petróleo venha a cair a níveis que inviabilizem o pré-sal. Mas, para pessoas com as quais eu converso e que, realmente, conhecem isso, é hipótese (a inviabilização pelo preço) totalmente fora do baralho. Isso é argumento de quem quer complicar. O pré-sal será viável a US$ 40 o barril e o petróleo não vai cair a menos de US$ 40 o barril. E o que está em questão no pré-sal não é o Brasil tornar-se um país rico por causa do petróleo. O que está em jogo é a capacidade que o petróleo pode ter para trazer desenvolvimento para o Brasil. Porque ele vai trazer muita demanda por máquinas, bens de capital, indústria naval, gerar emprego industrial, gerar serviços. Vai gerar um monte de coisas boas.

Do Valor Econômico