Inocentes traz seu punk ao palco do Festival Rock ABC

Vocalista Clemente fala sobre movimento punk, origens da banda e guerra de informações que levam jovens a visões políticas distorcidas

Foto: Murilo Amancio

A banda Inocentes, uma das mais importantes para a história do punk rock nacional, preparou um repertório especial para o show que fará na 3ª edição do Festival Rock ABC.

Nesta entrevista à Tribuna, o vocalista, Clemente Nascimento, fala sobre as origens do movimento no ABC, as rivalidades, a repressão militar, a visão distorcida de alguns jovens sobre a atual situação política do país e sobre o que esperar do show, que contará com a participação especial de Ariel que também foi vocalista da banda no início dos anos 1980.

A formação atual é a mesma desde 1995, Anselmo Monstro no baixo, Nonô (Luis Singnoreti) na bateria, Ronaldo Passos na guitarra e Clemente, voz e guitarra.

A transmissão dos shows ao vivo será amanhã, a partir da 18h, pelo facebook dos Metalúrgicos do ABC e YouTube do Sindicato e da TVT, com abertura feitas pelas bandas Bluemore e Thor. Esta edição tem parcerias com as Prefeituras de Diadema e Mauá.

As duas bandas independentes foram escolhidas pelo público e tiveram mais curtidas em seus vídeos postados nas redes sociais nas duas categorias, com pelo menos um sócio do Sindicato e com pelo menos um morador da região.

Tribuna Metalúrgica – Vocês farão show no Festival Rock ABC, região berço do punk e que tinha uma famosa rivalidade com os punks de São Paulo. Pra começar, gostaria que comentasse essa rivalidade.

Clemente Nascimento – A cena punk do ABC sempre foi muito forte, conheci a galera do ABC em 1979 quando tocava com a minha primeira banda, Restos de Nada. Minha segunda banda foi Condutores de Cadáver e o pessoal do ABC frequentava muito nossos shows.

A rivalidade começa como aquela coisa idiota de jovens cheios de testosterona, de um achar que é mais punk que o outro e isso criou uma rivalidade que acabou chegando às vias de fato. Na década de 1970 o rock era uma coisa de turmas que a gente apelidou de gangues.

TM – O pessoal do ABC, por estar numa área mais operária, se achava mais punk que vocês?

Clemente – Sem dúvida. A gente trabalhava em escritório em São Paulo, achavam que a gente não era tão punk. Uma rivalidade idiota. Mas em termos gerais, todo mundo era amigo. O festival Começo do Fim do Mundo ocorreu porque o pessoal do Inocentes passou com a bandeira da paz no ABC.

TM – Também houve uma tentativa de trégua em um show realizado na PUC em 1982 para união do punks que terminou em polícia e fogo. O que aconteceu exatamente?

Clemente – Nesse show na PUC, fizemos questão de levar duas bandas do ABC, Passeatas e Auster, para selar um tratado de paz, mas a polícia invadiu e tacou fogo nos arquivos da PUC. Isso porque teve invasão da polícia lá em 79 e esses arquivos estavam lá, aí eles aproveitaram o show, não sei bem se foi a polícia ou agentes da ditadura, para tacar fogo e culpar a gente. Até explicar que focinho de porco não é tomada, deu trabalho, mas ninguém foi formalmente acusado.

TM – Está correto afirmar que Restos de Nada, da qual você foi baixista, foi a primeira banda de punk brasileira?

Clemente – Sim, é considerada a primeira banda punk porque foi a que conseguiu registrar seu trabalho depois e seus ex-membros continuaram com uma carreira. Restos de Nada se tornou um catalizador porque organizava os shows e já tinha um som definido como punk rock, enquanto as outras ainda misturavam um pouco.

TM – Como era a visão política de vocês naquela época?

Clemente – Sempre foi uma visão progressista totalmente de esquerda, mas não só por causa da ditadura militar, mas porque era nossa visão de mundo mesmo, a ditadura militar era só o pano de fundo. Tem gente que lutava contra a ditadura, mas não tinha esse pensamento progressista.

TM – Hoje vemos pessoas defendendo a volta dos militares ao poder. Como você vê esse movimento?

Clemente – É resultado de todo um processo de desinformação. Estão distorcendo vários discursos, faz parte de uma guerra híbrida, mas não é um fenômeno que acontece só no Brasil, acontece no mundo todo. Tem gente que se diz anarcoconservador, anarcocapitalista, eles não sabem que a primeira coisa que acaba com o anarquismo é o capitalismo. Como se pode ser um anarcocapitalista? O cara acha que é só não ter Estado e cada um faz o que quer, não, pelo contrário, todos têm responsabilidade, o anarquismo é coletivo.

TM – Qual música dos Inocentes você acha que se encaixa bem para falar sobre o governo atual, Vermes, talvez?

Clemente – Vermes se encaixa perfeitamente, é meio uma analogia com o livro A Revolução dos Bichos, de George Orwell. Nossas músicas se encaixam neste contexto antifascista, de críticas sociais. Miséria e Fome, Maldita Polícia e Tambores, também têm muito a ver com o momento atual. Às vezes me perguntam se não vou escrever uma música pra nossa época, mas já escrevi várias.

TM – Como você vê o movimento punk hoje e a importância da conscientização pela música?

Clemente – A música sempre ajuda. Também naquela época era um trabalho de conscientização difícil. Temos visto vaias em shows de artistas de esquerda, porque parte do público não entende a letra, não é porque estão ouvindo aquilo que estão entendendo.

TM – Como foi esse período de pandemia pra vocês?

Clemente – Foi uma dureza desgraçada, ainda mais com esse governo que não ajudou em nada. Eu sozinho fiz uma música para os ferroviários, Sobre Trilhos, participamos de um documentário sobre o Renato Russo e fizemos algumas lives.

TM – O que representa tocar num festival de rock promovido pelos Metalúrgicos do ABC?

Clemente – Pra gente é um retorno aos primórdios, tanto que convidamos o Ariel que era vocalista do Restos de Nada junto comigo, depois foi para os Inocentes em 1982. Vamos cantar clássicos daquela época, um repertório dos tempos de chumbo. Quero mandar um abraço pra todos, agradecer o convite e chamar todo mundo para assistir a live que vai ser um show histórico.

Vermes

Inocentes

Rastejam os vermes!

Pelas entranhas do Poder

Contaminando por dentro

Fazendo apodrecer

Dentro dessa carcaça

E vivem com a nobreza

Se alimentando da fome

Da pobreza e da incerteza

Eles falam como homens,

eles agem como homens

Até parecem homens,

podem te enganar

Mas se você prestar atenção,

Se prestar atenção verá

Que são vermes!!!

Pilham e roubam

Enquanto fabricam leis

Só pra manter a esperança

De quem nunca teve vez

Vermes insaciáveis

Sempre sugam mais e mais

Depois desfilam impunes

Pelas colunas sociais