Já candidata, Dilma estampa capas de revistas conservadoras
Veja e Época, duas publicações afinadas com a oposição ao govenro Lula e aos movimentos progressistas, trazem entrevistas com a ministra-chefe da Casa Civil. Leia as duas íntegras
Duas das revistas de maior circulação do Brasil – a Veja, da editora Abril, e a Época, das Organizações Globo -, ambas com nítida afinidade com a oposição e o governo Serra e descarada repulsa pelos movimentos progressistas e o governo Lula, trazem em suas manchetes de capa, com foto-poster, reportagens e entrevistas com a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Neste final de semana, Dilma teve seu nome oficializado, por aclamação pelo PT para disputar a Presidência da República pelo partido, em outubro.
A Época estampa sua capa com a foto de Dilma ocupando todo espaço e usa como título principal a pergunta “Você acha que sou um poste?”. A Veja também traz a capa tomada pela foto da ministra e o título “A realidade mudou e nós com ela”, frase da candidata petista. Dilma está ótima nas duas entrevistas. Firme, direta e competente
A Época afirma ter feito entrevista exclusiva, mas Veja também traz dez perguntas feitas via email. A revista da Globo é mais factual, porque o formato da entrevista (pingue pongue) não favorece a costumeira interpretação e editorialização das reportagens que marcam os textos das duas revistas. A Veja, como sempre, não resistiu. A Revista da Abril usou e abusou de adjetivos negativos para falar sobre aliados, PT, dirigentes petistas e nomes do governo para se referir à Dilma.
Embora nitidamente alinhadas às elites e à oposição, as duas revistas têm de ter boa tiragem-vendagem para conseguir os valiosos anúncios que (em parte) as sustentam. Não teriam, assim, como ignorar Dilma por mais tempo, já que ela é ministra, mulher, candidata do presidente Lula e inegavelmente tem currículo e competência a serem respeitados.
Com certeza, até outubro, outras capas virão. E, dependendo das pesquisas e dos apoios que Dilma conquistar, essas futuras reportagens sobre a agora candidata oficial do PT poderão ser mais ou menos verdadeiras-corrosivas-comprometidas-editorializadas. É esperar para ver, mas a tendência (pelo que é conhecido das duas publicações) é Veja e Época comprovem sua veia conservadora, neoliberal e opinativa.
Abaixo as duas reportagens:
Algumas frases de Dilma:
Todos os projetos do governo, de alguma forma, passaram pelo presidente e por mim.
somos contra a privatização de patrimônio público ou de estatais como Petrobras, Furnas, Chesf, Eletrobrás, Banco do Brasil, a Caixa. Essa é uma posição de governo que não tem nada a ver com Estado empresário, mas com a preservação do patrimônio público.
O Estado mínimo tem uma perversidade monstruosa
Duvido que os grandes experientes em gestão tenham o nível de experiência que eu tenho.
nunca mudei de lado. Sempre estive ao lado da justiça, da democracia e da igualdade social.
Leia abaixo as duas reportagens
Reportagem da Época
“Você acha que sou um poste?”
Dilma Rousseff já fala como candidata à presidência. Falou pela primeira vez numa entrevista a ÉPOCA, concedida na última quinta-feira, dia de abertura do Congresso do PT que a aclamou como o nome do partido para disputar a sucessão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Escolhida candidata por Lula, Dilma se apresenta como a melhor alternativa para dar continuidade aos projetos do atual governo. E faz questão de rebater a acusação dos adversários de que seja apenas um títere do presidente: “Duvido. Duvido que os grandes experientes em gestão tenham o nível de experiência que eu tenho. Duvido”. Mas, questionada sobre a possibilidade da volta de Lula em 2014, Dilma aceita a hipótese. “Sem sombra de dúvida, ele pode. O presidente chegou a um ponto de liderança pessoal, política, nacional e internacional que o futuro dele é o que ele quiser”, diz a ministra-chefe da Casa Civil – posto de Dilma até 2 de abril, quando deverá deixar o cargo para disputar as eleições presidenciais
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Na entrevista de quase duas horas, realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, sede provisória da Presidência da República, Dilma expôs suas credenciais para comandar o Brasil, debateu planos de governo e falou claramente o que pensa sobre temas como o tamanho do Estado na economia, as privatizações, o aborto, a descriminalização das drogas, o câncer e a iminência de se tornar avó. Dilma chegou e saiu sorridente – como uma candidata pronta para desfazer a imagem da tecnocrata inflexível com que foi frequentemente caracterizada antes de sonhar com o Palácio do Planalto.
ÉPOCA – O que qualifica a senhora para ser presidente da República?
Dilma Rousseff – O governo Lula deu um passo gigantesco. Construiu um alicerce em cima do qual você pode estruturar a transformação de que o Brasil precisa. A partir de 2005, o presidente me deu a imensa oportunidade de coordenar o segundo governo dele. Estávamos enfrentando uma crise muito forte (o escândalo do mensalão) e uma disputa que tentava inviabilizar o governo. Ainda não tínhamos conseguido implantar a estabilidade de forma definitiva. A inflação e as contas públicas estavam sob controle, mas o crescimento ainda era baixo. As reservas também. Aí o investimento entrou na ordem do dia, e modificamos o jogo no segundo mandato do governo Lula. Tive a oportunidade de entrar exatamente nessa grande crise.
ÉPOCA – Em algum momento o presidente disse que a senhora seria candidata?
Dilma – O presidente nunca chegou para mim e disse: “Você vai ser a sucessora do meu governo”. Ele avaliou que participei da elaboração das principais políticas: o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), o pré-sal, a TV Digital, a banda larga nas escolas. Todos os projetos do governo, de alguma forma, passaram pelo presidente e por mim. Uma das coisas que me credenciam para ser presidente é que conheço hoje o governo brasileiro de forma bastante circunstanciada, precisa e profunda. E conheço as necessidades para dar continuidade a esses projetos.
ÉPOCA – O que seria, num eventual governo da senhora, o passo seguinte?
Dilma – No Brasil, os governos sistematicamente não tinham projeto de desenvolvimento econômico-social que incluísse todos os brasileiros. A grande novidade do governo Lula é o olhar social. Não só porque estendemos benefícios econômicos aos mais pobres. Há uma profunda mudança cultural e moral quando você torna a população mais pobre do Brasil legítima interessada no desenvolvimento. A reação ao Bolsa Família mostra a aversão elitista a políticas sociais num país com a desigualdade do Brasil. Quando chamam o Bolsa Família de “bolsa-esmola”, é porque veem a política social como uma coisa ultrapassada. Alguns dizem que essa é a continuidade do passado. Não é. É a maior ruptura com o passado. Não dá para falar: “Eu fiz o Bolsa Família antes”. Ah é? Fez para quantos? O que buscamos é uma política para cuidar dos 190 milhões. Se você perguntar para mim: “Tá completo?”. Vou falar: “Nããão”.
ÉPOCA – Como presidente, o que a senhora faria que o governo Lula não fez? Como imprimiria sua marca?
Dilma – Vou participar até o dia 2 de abril do imenso esforço deste governo para mudar o Brasil. Isso me dá condições de olhar para a frente e falar que você não faz em oito anos uma transformação tão profunda. Há coisas que precisam de mais tempo para maturar. Talvez eu dê mais impulso e acelere mais, se eu ganhar a eleição, mas você vai precisar de uma sucessão de governos. Um exemplo: toda a política de inovação em pesquisa tecnológica. Conseguimos fazer um pedaço. Mas é preciso fazer no futuro muito mais: desenvolver uma cadeia de inovação para fármacos, uma para nanotecnologia, cuja infraestrutura já começou a ser feita. Entrar na economia do conhecimento é fundamental na próxima gestão. Teremos de dar suporte às universidades públicas, que estavam sucateadas, voltar a fazer pesquisa básica, dar suporte para termos trabalhadores especializados no ensino médio. Isso leva décadas.
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“Uma das coisas que me credenciam para ser presidente é que conheço o governo de forma bastante circunstanciada, precisa e profunda. Conheço também as necessidades para dar continuidade aos projetos”
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ÉPOCA – Que papel a senhora vê para o Estado nesse processo? Ele tem de ser dono de empresas? Ou estabelecer regras para garantir um ambiente estável para os negócios prosperarem?
Dilma – Os países ocidentais e desenvolvidos organizaram seus Estados para dar suporte à sociedade e às empresas privadas. Tanto é assim que um dos maiores compradores e organizadores da demanda privada nos EUA é o Pentágono, né? Essa discussão de Estado empresário é uma discussão da década de 50. Não é a deste momento no Brasil. Agora, somos contra a privatização de patrimônio público ou de estatais como Petrobras, Furnas, Chesf, Eletrobrás, Banco do Brasil, a Caixa. Essa é uma posição de governo que não tem nada a ver com Estado empresário, mas com a preservação do patrimônio público.
ÉPOCA – E no caso das estatais de áreas em que faltam investimentos, como a Infraero, que administra os aeroportos?
Dilma – Como a Infraero mexe com nosso espaço aéreo, é preciso ter cuidado. O que está certo é mudar a Infraero, abrir o capital, profissionalizar a gestão, torná-la mais eficaz. É o que o governo Lula defende (e eu defendo). A privatização dos aeroportos não pode ser tratada dessa forma, porque só há uns quatro lucrativos. O resto é deficitário. Qualquer modelo tem de ser bem discutido, ou você faz aquela privatização cujo custo é proibitivo para a sociedade, como foi feito com algumas ferrovias. Pelos contratos de concessão, as empresas têm direito de ficar com elas pelo tempo que quiserem sem fazer investimento, pois eles foram malfeitos.
ÉPOCA – Quando a senhora diz ser radicalmente contrária à privatização do patrimônio público, isso soa como crítica às privatizações do governo FHC, como se elas tivessem sido danosas…
Dilma – Não chegou a ser tão danoso como foi para países vizinhos, porque não conseguiram fazer tudo. Mas pegaram a Petrobras e começaram a tentar reduzi-la a uma dimensão menor. Impediram a verticalização da empresa, que ela tivesse ganhos de escala.
ÉPOCA – Mas a privatização da Petrobras estava impedida por lei…
Dilma – Achamos estranha aquela história do nome Petrobrax. Era uma tentativa de abrir o capital mais do que devia. A única parte do Brasil no nome da Petrobras é o “bras”. Se é capaz de transformar um S em X, tem dó… As intenções são muito claras!
ÉPOCA – E a privatização da Vale? E a das teles?
Dilma – Com as teles, acho que foi diferente. Em relação à Vale, vamos ter de fazer exigências a respeito do uso da riqueza natural. Isso não significa reestatizar. Ela pode ser perfeitamente privada, desde que submetida a controles. Só não acho possível concordar que a Vale exporte para a China minério de ferro e a gente importe bens e produtos siderúrgicos. Essa não é uma relação do nosso interesse como nação. Não vejo grandes problemas na Vale. Agora, vejo grandes problemas no setor elétrico. A privatização de Furnas foi impedida porque o pessoal se mobilizou. A visão que se tinha de não planejamento e de não visão de longo prazo no caso da energia deu no que deu em 2001 (ano do apagão). Sou contra privatizar o BNDES, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal. Minha gratidão com a história é que ela provou que a gente estava certo. Ai de nós se não tivéssemos os três bancos! Só conseguimos enfrentar a crise econômica porque tínhamos estrutura para enfrentá-la. Porque na hora da crise, quando o pavor bate…
ÉPOCA – Podemos mudar de assunto?
Dilma – Não, é que quero explorar muito essa história do Estado, sabe? O Estado mínimo tem uma perversidade monstruosa. Sabe qual é?
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ÉPOCA – Qual é?
Dilma – Não investe em saneamento, não investe em habitação, deixa o país com uma das menores taxas de cobertura de esgoto, de drenagem. Tem outra perversidade: não considera o que tem de ser feito com subsídio. É isso o Estado mínimo a que o presidente Lula se refere. E concordo quando ele diz: para quem é rico, não interessa ter Estado. Para quem é pobre, o Estado ainda cumpre um papel fundamental. Qual é a diferença para os anos 50? Nos anos 50, o Estado empresário tinha lá sua função. Não tinha todas as empresas estruturadas. Como alguém em sã consciência, em pleno século XXI, em 2010, pode falar que o Estado brasileiro vai ser empresário? Isso é um equívoco monstruoso. Uma das grandes vantagens do Brasil é ter um setor privado forte. Vá a qualquer outro país da América Latina. Um dos problemas deles é que a economia é muito simples. Eles não têm empresários de porte. Nós estamos em outra fase. Somos um país cujas grandes empresas vão se internacionalizar. E quem é que vai apoiar isso? O Estado.
ÉPOCA – A oposição tem comparado sua candidatura à de um poste. O que a senhora acha dessa comparação?
Dilma – Você acha que, como ministra-chefe da Casa Civil, eu sou um poste?
ÉPOCA – Provavelmente quem diz isso acha que sim.
Dilma – Duvido. Duvido que os grandes experientes em gestão tenham o nível de experiência que eu tenho. Duvido.
ÉPOCA – A senhora tem esperança de que o deputado Ciro Gomes (PSB-CE) desista de se candidatar a presidente?
Dilma – Para mim, seria muito bom que ele estivesse em meu palanque. Mas, seja qual for a decisão dele, vamos respeitar porque ele é do nosso campo. Ciro é uma pessoa especial. Foi um companheiro de governo e participou com a gente dos momentos mais difíceis quando, em 2005, o governo estava sofrendo um certo cerco. Quero estar com ele no mesmo palanque, mas não é a minha preferência que vai informar o que o deputado Ciro Gomes vai fazer.
ÉPOCA – Se a senhora for eleita, qual será o papel do presidente Lula em seu governo?
Dilma – Olha, estou falando o que eu gostaria, tá? Acho que o Lula seria um dos melhores conselheiros que alguém poderia ter.
ÉPOCA – A senhora trabalha com a hipótese de que Lula possa ser candidato à Presidência da República em 2014?
Dilma – Sem sombra de dúvida, ele pode.
ÉPOCA – Ele já falou sobre isso com a senhora?
Dilma – Não. Vocês não conhecem o presidente se me perguntam isso. Ele jamais falaria isso.
ÉPOCA – A senhora, eleita, abriria mão de se candidatar à reeleição?
Dilma – Desculpem, mas não vou fazer uma discussão dessas, né? O presidente Lula chegou a um ponto de liderança pessoal, política, nacional e internacional, que o futuro dele é o que ele quiser.
ÉPOCA – O PT deseja mais espaço num eventual governo Dilma, pois considera que a senhora está à esquerda do presidente Lula. A senhora concorda?
Dilma – Gente, que PT é esse? Dentro do PT não se fala isso.
ÉPOCA – Em entrevista ao blog de José DIrceu, o presidente do PT, José Eduardo Dutra, diz que o partido espera mais protagonismo no governo Dilma.
Dilma – Maior protagonismo que teve no governo Lula?
ÉPOCA – Sim.
Dilma – Não sei o que Dutra quer dizer com isso. Porque o PT teve um grande protagonismo no governo Lula. E eu darei ao PT o grande protagonismo que o partido merece em qualquer governo. Agora, faremos um governo de coalizão.
ÉPOCA – A senhora é vista como durona e intransigente. Na Presidência, a senhora saberá ter a flexibilidade necessária para comandar um governo de coalizão?
Dilma – Na chefia da Casa Civil, meu nível de negociação é um. Os ministros são meus pares. Então, o tipo de conduta é um. Quando há divergência, quem desempata é o presidente. Sigo a orientação do presidente. Quando você exerce outra função, tem de fazer outro tipo de negociação.
ÉPOCA – Mas a senhora tem talento para a conciliação como o presidente Lula?
Dilma – Aprendi muito com ele. (risos) Isso aqui é uma escola. É uma coisa engraçada. Você aprende, por exemplo, que tem hora que é preciso deixar passar um tempo para tomar uma decisão. O presidente diz muito que onde estão os pés explica um pouco da cabeça.
ÉPOCA – Nos anos 60, a senhora foi guerrilheira e agora fala em democracia ocidental. Quando a senhora mudou?
Dilma – Eu tinha 15 ou 16 anos, quando a ditadura começou. De 1964 a 1968, houve um endurecimento do regime. Minha geração experimentou a pior cara da ditadura: o estreitamento e a desesperança de que você pode modificar o país por meio de processos democráticos. Então, alguém que acreditava que seria possível a democracia naquele período era ingênuo, porque a realidade contrariava quem pensava isso. Esse processo vai levar a minha prisão em 1970. E veja como é interessante a vida. Quanto pior vai ficando a repressão, mais valor você vai dando à democracia. Quando você está na cadeia e vê tortura, morte e o diabo, o valor da democracia e o direito de expressão e de discordar começam a ser cada vez mais um valor intrínseco. Esse mecanismo não é só meu. É de minha geração, que saiu das trevas em relação à democracia – e passou progressivamente a lutar por ela como um valor fundamental.
ÉPOCA – A senhora é a favor de julgar os acusados de tortura e terrorismo?
Dilma – As pessoas que, como eu, participaram do processo de resistência à ditadura foram presas, condenadas, cumpriram pena, tiveram seus direitos políticos cassados. Não há nenhuma similaridade com a condição daqueles que torturaram. A Lei de Anistia está vigente. Essa é uma questão que está no Supremo Tribunal Federal (STF). O que o Supremo decidir tem de ser acatado por todos. Agora, uma coisa é uma atividade de violência de pequenos grupos, a grande maioria com idade até 25 anos, 26 anos. Outra coisa, muito diferente, é a violência do Estado, porque é desproporcional. Tanto que nós fomos punidos, sem direito a recurso qualquer. Fui condenada e cumpri pena maior do que minha condenação. Ninguém me ressarciu de nada.
ÉPOCA – O ex-ministro José Dirceu, no dia de sua posse na Casa Civil, chamou-a de “camarada de armas”. A senhora gostou?
Dilma – Ele estava fazendo para mim um cumprimento, porque para ele era muito importante. Entendo assim. Havia várias características nas diferentes organizações de esquerda. A minha fazia certa crítica às ações armadas, principalmente assaltos a banco. Tínhamos uma crítica a isso, e isso está registrado. Não fui condenada por ação armada, porque não a pratiquei.
ÉPOCA – Como o câncer mudou sua vida?
Dilma – Olha, o câncer muda a relação da gente com a vida. A primeira coisa mais forte que muda é o imenso valor que você dá a apenas viver. A gente passa o tempo inteiro da vida falando: “Ah, mas eu vou fazer isso, eu vou fazer aquilo, amanhã vai ser assim”. O câncer fala assim para ti: “Na verdade, a coisa mais importante é viver”. Sua relação com a natureza passa a ser também muito forte. Você pensa: “Será que vou ver o sol bater nas árvores?”. Olhei e fiquei pensando nisso. Você começa a ver o mundo com um olhar melhor. A segunda coisa é que você percebe que, como em vários outros momentos da vida, você conta com você. Você pode se derrotar se botar para dentro a doença. Ela foi extraída, mas tem de ter muito cuidado para não deixar ela entrar para dentro da cabeça, dos sentimentos, da visão de mundo. É preciso ter cuidado com isso, com aquela coisa insidiosa que se chama medo, que todos temos. É uma relação que só se resolve com você. Sempre há uma busca de transcendência, você acredita numa força maior, sobretudo porque tem uma imensa solidariedade das pessoas. Elas te passam uma coisa, dizem: “Eu vou rezar por você”. Essa é uma relação muito forte. Dão medalhinha. Me deram muita Nossa Senhora, muita oração. Também dão remédios, mandam vários produtos, cartas, há manifestações muito comoventes. Essa questão da reza é muito forte.
ÉPOCA – A senhora rezou?
Dilma – Ah, você reza. Não é rezar, no sentido que a gente rezava quando era criança. Há outras formas. Tenho o hábito de recorrer a Nossa Senhora, por exemplo, quando o avião balança. Já tive turbulências pesadas na vida…
ÉPOCA – A senhora acredita em Deus?
Dilma – Não sei se é o seu Deus, mas eu acredito numa força maior do que a gente.
ÉPOCA – Mas uma religião específica, a senhora não tem?
Dilma – Não, mas respeito. Você tem de respeitar todas as religiões.
ÉPOCA – A senhora esteve num terreiro de candomblé na semana passada.
Dilma – Sim, estive. O Ilê Aiyê é um terreiro de candomblé muito bonito e tem uma obra social muito importante.
ÉPOCA – É visível que a senhora tem cuidado mais da aparência.
Dilma – Você acha que eu estou melhor, né? (Risos.)
ÉPOCA – Como a senhora lida com a vaidade?
Dilma – Toda mulher é vaidosa. Se você disser a uma mulher que ela vai tirar um retrato, ela vai começar a ajeitar o cabelo, a dar um jeitinho, mesmo que ela esteja à vontade, natural. Fiz coisas boas para mim: tirar os óculos. Quando fazia 40 graus, meu nariz assava. Eu não tenho o osso central (entre os olhos). Os óculos não seguravam, caíam. Eu ficava com isso aqui vermelho (aponta para o meio do nariz). Foi um grande alívio voltar a usar lente de contato. Achei uma marca que eu consigo usar. É bom porque às vezes leio sem óculos, dependendo da hora. Como vocês sabem, dei uma arrumada, fiz uma plástica. A pessoa que quer fazer uma plástica deve fazer. Mas é importante cuidar para não perder suas características nem ficar muito puxada.
ÉPOCA – A senhora fez plástica porque quis ou foi orientada por marqueteiros?
Dilma – Fiz porque botei minha lente. Quando você usa óculos, você não enxerga o rosto direito, e ele tampa suas rugas. Um dia de manhã, olhei meus olhos e falei: “Meu Deus do céu, que coisa horrorosa!”. Primeiro, fiz a lente. Depois, fiz a plástica. Eu me achei muito velha, então dei uma mudadinha. Não fiquei nova como eu queria, não, mas acho que melhorou! (Risos.)
ÉPOCA – A senhora pode ser a primeira mulher presidente do Brasil. Paradoxalmente, nas pesquisas a maior resistência a seu nome se dá entre as mulheres. Por que isso acontece?
Dilma – É simples. As mulheres são mais críticas e analíticas. Vai passar um tempo, elas vão analisar, analisar, analisar. Espero que essa não seja a realidade depois. Quem me chamou a atenção para isso foram outras mulheres candidatas. As mulheres precisam primeiro confiar, levam um tempo maior a tomar posição. Mas, depois que tomam, nada nem ninguém as demove. Como vocês devem saber por experiência própria. (Risos.)
ÉPOCA – Qual é sua posição sobre o aborto?
Dilma – Nenhuma mulher, feminista ou não, é a favor do aborto. Se você é mulher, consegue imaginar o que o aborto produz numa pessoa, o nível de violência que é. É extremamente distorcida essa questão de falar que fulana ou beltrana é a favor ou contra o aborto. É a favor ou contra o quê? Sou a favor de que haja uma política que trate o aborto como uma questão de saúde pública. As mulheres que não têm acesso a uma clínica particular e moram na periferia tomam uma porção de chá, usam aquelas agulhas de tricô, se submetem a uma violência inimaginável. Por isso, sou a favor de uma política de saúde pública para o aborto.
ÉPOCA – Alguma mulher próxima à senhora fez aborto?
Dilma – Conheci mulheres que passaram por isso. Amigas minhas fizeram. Todas foram fazer chorando e saíram chorando. Não conheço uma que não tenha sido assim. Nunca tive de fazer aborto. Apenas, tive uma gravidez tubária.
ÉPOCA – Como a senhora vê a descriminalização das drogas?
Dilma – A droga é uma coisa muito complicada. Não podemos tratar da questão da droga no Brasil só com descriminalização. Estou muito preocupada com o crack. O crack mata, é muito barato, está entrando em toda periferia e nas pequenas cidades. Não vamos tratar o crack única e exclusivamente com repressão, mas com uma grande rede social, que o governo integra. Há muita entidade filantrópica nas clínicas de recuperação. A gente tem de cuidar de recuperar quem já está viciado e cuidar de impedir que entrem outros. Tem de cuidar também para criar uma política de esclarecimento sobre isso. Não acho que os órgãos governamentais, Estado, municípios e União, vão conseguir sozinhos. Vamos precisar de todas as igrejas e entidades que têm uma política efetiva de combate às drogas. A questão da droga no século XXI é muito diferente daquele tempo de Woodstock, que tinha um componente libertário.
ÉPOCA – A senhora é a favor da repressão mesmo no caso de drogas leves, como a maconha?
Dilma – Não conheço nenhum estudo que comprove que a droga leve não seja o passo para outra. Esse é o problema. Num país com 50 milhões de jovens entre 15 e 29 anos, é complicado falar em descriminalização, a não ser que seja para fazer um controle social abusivo da droga. Não temos os instrumentos para fazer esse controle que outros países têm. A não ser que a gente tenha um avanço muito grande no controle social da droga, fazer um processo de descriminalização é um tiro no pé. O problema não é a maconha, mas é o crack. O crack é uma alternativa às drogas leves, médias, pesadas. Não é possível mais olhar pura e simplesmente para a maconha, que não é um caso tão extremo nem tão grave.
ÉPOCA – Qual é sua visão dos movimentos do Irã para fazer uma bomba atômica?
Dilma – É preciso discutir o Irã sob outra ótica. Depois da Guerra do Iraque, temo muito essa história de que o Irã está fazendo isso ou aquilo. Se você não der uma abertura para o diálogo com o Irã, você vai isolá-lo. O Irã é uma economia sofisticada, um país nacionalmente íntegro, com unidade, e com mais de 70 milhões de habitantes. Não é algo que se possa tratar dessa forma.
ÉPOCA – Mas o governo do Irã há anos não deixa os inspetores das Nações Unidas entrar lá…
Dilma – Vou perguntar uma coisa, a título de raciocínio. Não deu muito certo a política de invadir o Iraque e do Afeganistão, deu?
ÉPOCA – Provavelmente, não.
Dilma – Pois, então, cuide-se com a política bélica anti-Irã, ou cuide-se com o isolamento do Irã. O que se faz é fortalecer a liderança do Irã na área. A experiência recente tende a nos levar a ser um pouco mais críticos. Não somos a favor de que ninguém construa bombas atômicas por aí, mas temos de discutir o desarmamento. Não tem o menor sentido os que se armam apontarem seu dedo armado para os outros. Temos de discutir internacionalmente uma política de desarmamento. Nós, do governo Lula, somos a favor da inspeção das armas, somos a favor do uso da energia nuclear para fins pacíficos e também somos a favor de que haja diálogo. Sem diálogo, não se constrói uma política correta.
“Se você não der uma abertura para o diálogo com o Irã, vai isolá-lo. Não deu muito certo a política de invadir o Iraque e do Afeganistão, deu?”
ÉPOCA – A aproximação do Brasil com o Irã não afiança os abusos cometidos contra os opositores do regime?
Dilma – Quando a gente faz a mesma coisa com os Estados Unidos, estamos afiançando Guantánamo (prisão em Cuba para os acusados de terrorismo)? Ou o que aconteceu em Abu Ghraib (prisão do Iraque onde iraquianos foram torturados por americanos)? Não estamos fazendo isso. Estamos nos relacionando soberanamente. Essa posição de interferência na política interna dos outros já levou a muitos problemas no mundo. Um exemplo é o Haiti, produto de uma política internacional que se julgava no direito de exigir A, B, C ou D do povo haitiano. Deu no que deu, um desastre.
ÉPOCA – Vários governos da América Latina, em especial a Venezuela, tentam controlar a mídia e cercear a liberdade de opinião. Qual é sua opinião sobre o governo do presidente Hugo Chávez?
Dilma – No governo brasileiro, somos a favor da liberdade de imprensa e de livre manifestação, um direito fundamental da democracia. Não queremos cercear, controlar o conteúdo de jornais ou fazer nada similar. Mas não nos relacionamos com países exportando nosso modelo para ninguém, nem impondo esse modelo. Não fazemos isso. É muita pretensão quem acha que define de fora a política interna de um povo. Ela tem suas características, suas especificidades e suas realidades sociais. A Venezuela é uma realidade, nós somos outra. Temos uma relação com a Venezuela, sim, e mantemos essa relação. Temos também uma relação com o presidente Álvaro Uribe (da Colômbia), que está pedindo o terceiro mandato – e não tenho visto por aqui ninguém questionando o terceiro mandato dele.
ÉPOCA – A senhora vai ser avó. Como se sente?
Dilma – Ter filho é um evento, uma coisa única na vida. Na minha vida, um momento importante foi o nascimento de minha filha. Agora, filho dá um trabalhão danado. Primeiro, porque, quando você é marinheiro de primeira viagem, não desgruda o olho. Segundo, porque é sua responsabilidade criá-lo. Terceiro, porque, depois que o filho cresce, você ainda tem o impulso de proteger. Fica preocupado, quer saber, não dorme. Desconfio que ter neto é uma espécie de ser um pai, ou mãe, irresponsável. Você pode fazer tudo para ele. Confia que tem lá uma pessoa que vai proibir de comer chocolate todo dia, não vai dar refrigerante, não vai deixar tomar sorvete toda hora. É uma grande, uma imensa, uma fantástica invenção divina um neto. Eu aguardo o meu ansiosamente
Reportagem publicada na Veja
“Candidata conquista o ninho”
O PT aceita oficialmente a candidatura imposta por Lula. Resta saber o que Dilma aceitará do PT no caso de chegar à Presidência da República
“Quando a gente pensa que já viu tudo, vê que não viu nada”, disse Dilma Rousseff depois de assistir ao desfile carnavalesco da escola carioca vencedora, a Unidos da Tijuca, que apresentou o enredo O Segredo. A frase merece o comentário que Dilma mais aprecia: “A senhora tem razão!”. Quem nunca pensou em vê-la sambar com um gari na avenida, viu. Quem achava impensável ver a ministra dar colo a Mercy Jones, filha de 4 anos de Madonna, rainha do pop, viu. E quem pensava que o mais conhecido segredo da República, a candidatura presidencial de Dilma, fosse um enredo com desfecho incerto, viu sua apoteose no congresso do PT na semana passada. Dilma Rousseff, ministra-chefe da Casa Civil do governo Lula, foi finalmente apontada como a candidata à Presidência da República.
O caminho daqui para a frente vai exigir de Dilma mais do que samba no pé e jeito com crianças. Seu repto eleitoral é de uma ousadia ímpar. Sem nunca ter enfrentado nem eleição de condomínio, ela vai buscar os votos dos eleitores para tentar suceder ao mais popular presidente da República da história brasileira recente. Organizada e centralizadora, ela vai se deixar levar caoticamente por uma caravana eleitoral que exige fôlego de atleta, concentração de enxadrista e prontidão circense. Com um humor superficial facilmente azedável e dona de opiniões incontrastáveis, quase hieráticas, sobre os temas técnicos mais arcanos, ela vai ter de retribuir com sorrisos artificiais nos palanques os comentários mais estúpidos. E tome buchada de bode, maionese, feijão-de-corda e copos de Cravo Escarlate, a infusão energizante feita com dezesseis ervas consumida pelos ritmistas da Imperatriz Leopoldinense durante o desfile de Carnaval. Dilma provou, quase se engasgou, mas recuperou o fôlego e secou o copo.
A ministra já vinha ensaiando essa sua versão eleitoral exibida no Carnaval carioca. Ela foi testada mesmo em outra festa, a do IV Congresso do PT, que reuniu 1 300 dirigentes e militantes na capital federal, com o objetivo de aclamá-la pré-candidata do partido. A aclamação oficial pelo partido que lhe torcia o nariz, mas que agora depende dela para se manter no poder, é um desses momentos acrobáticos que só a política pode produzir. A escolha de Dilma revela o poder absoluto de Lula sobre o partido que ele fundou há trinta anos, fez crescer e levou ao topo do poder em Brasília. Revela também que continua sendo um desafio manter estável a volátil química petista, em que o anacronismo marxista radical minoritário convive com uma maioria convertida à democracia social. Lula sempre conseguiu manter sob controle essa reação em cadeia, afunilando todas as suas energias em benefício de sua própria carreira política. Dilma terá de aprender a fazer essa mágica. Por enquanto, ela conta com Lula para diminuir a concentração de ideias tóxicas explosivas no caldeirão ideológico do petismo. Na campanha e, eventualmente, no poder em Brasília, ela vai ter de domar os radicais com suas próprias forças.
Na semana passada, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o presidente tangenciou o tema. “Não há nenhum crime ou equívoco no fato de um partido ter um programa mais progressista do que o governo”, afirmou Lula. “O partido, muitas vezes, defende princípios e coisas que o governo não pode defender.” É um pouco mais complexo que isso. Uma vez no governo, o PT tentou implementar teses ruinosas de ruptura revolucionária com avanços duramente conquistados pelos brasileiros, como observa a Carta ao Leitor desta edição. Dinheiro de impostos, transferido a entidades ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), financiou invasões de propriedades, saques e depredações de prédios públicos. Apesar disso, em seus sete anos de governo, Lula conseguiu evitar que os radicais do partido materializassem seus instintos mais nocivos. Dilma, se eleita, conseguirá o mesmo?
A cinco meses do início da campanha, essa já é uma questão prioritária para a candidata. O ato inaugural dessa dinâmica deu-se na semana passada em Brasília. Em sua primeira aparição no evento do PT, a ministra discursou para comunistas e socialistas de países como China, Coreia do Norte, Cuba e Venezuela. Sua fala ocorreu a portas fechadas e não pôde ser acompanhada pela imprensa. Sabe-se que a ministra foi muito aplaudida e que recebeu o apoio do tiranete Hugo Chávez, transmitido por uma representante da Venezuela. Longe dos holofotes vermelhos, porém, Dilma e Lula tentam se desvencilhar dos pendores revolucionários do petismo. O texto A Grande Transformação, que reúne propostas do PT para a candidata, precisou ser totalmente reformulado. O original, de autoria do coordenador de seu programa de governo, Marco Aurélio Garcia, defendia maior controle da economia, atacava a liberdade de expressão e propunha o controle dos canais de TV por assinatura. Lula e Dilma mandaram retirar essas passagens e incluir temas como a defesa da preservação da estabilidade econômica e um elogio à atuação dos bancos brasileiros na crise financeira que sacudiu o planeta. “Você tem de ser conciliadora, Dilma”, insistiu Lula.
A preocupação do presidente e de sua candidata com o radicalismo aliado não se limita aos excessos de radicais como Marco Aurélio Garcia, cujo relógio ideológico está parado há três décadas. “Parece que tem gente no PT com saudade do tempo em que perdíamos uma eleição atrás da outra”, afirma o ex-prefeito de Belo Horizonte Fernando Pimentel, um dos estrategistas da ministra. O risco de o radicalismo petista contaminar a campanha de Dilma é tão grande que já existe até uma estratégia para detê-lo. Além de exigir mudanças nas sugestões para a candidata, o presidente já deixou claro, em conversas com os estrategistas da campanha, que as propostas do PT não se confundirão com o programa de governo de Dilma. Embora o radical Garcia seja oficialmente o coordenador do programa de governo, fórmula para tentar animar a combalida militância petista, Lula decidiu afastá-lo das articulações da campanha. Na área econômica, o principal alvo dos ataques tóxicos do radicalismo, os responsáveis serão o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, o presidente do Banco Central Henrique Meirelles e o ex-ministro Delfim Netto. “A maior contribuição do PT ao país é o governo Lula. Queremos dar continuidade a esse projeto com a Dilma”, diz o senador petista Aloizio Mercadante.
Se os arroubos autoritários do PT parecem estar contidos na campanha, o tamanho de sua participação num eventual governo de Dilma ainda é incerto. “Lula é maior que o PT e tem uma capacidade de liderança maior que a de Dilma. Isso cria uma oportunidade para que o PT exerça um protagonismo no governo Dilma”, disse recentemente o presidente eleito do PT, José Eduardo Dutra. É um sinal claro de que, se eleita, Dilma terá de continuar consumindo parte de seu tempo para conter as tentações hegemônicas da sigla. Dono de uma biografia única e de uma popularidade nunca antes obtida por um presidente, Lula conseguiu isolar os radicais distribuindo cargos e verbas em troca de obediência canina. “A aceitação de Dilma pelo PT é a prova definitiva de que Lula faz o que quer com o partido. Mas a relação dela com a legenda ainda está para ser definida”, diz o cientista político Octaciano Nogueira. Um eventual governo de Dilma, segundo especialistas ouvidos por VEJA, provavelmente tentará seguir a mesma linha de relacionamento adotada por Lula com relação ao PT. “Há também sempre a possibilidade de Lula interferir se essa tensão fugir do controle”, analisa o cientista político David Fleischer.
A influência de um presidente sobre os desígnios da própria sucessão é uma prática normal nas democracias. A imposição de um nome por um presidente a um partido político, porém, só é praxe em repúblicas populistas. No México, entre 1929 e 2000, o Partido Revolucionário Institucional (PRI) elegeu todos os presidentes da República. Partido e governo estavam tão imbricados que o presidente do país acumulava a função de presidente do partido. Como comandante nacional da legenda, também cabia ao presidente indicar o candidato do partido à sua própria sucessão, processo batizado de dedazo. Os casos mais conhecidos de dedazo terminaram mal. O ex-presidente mexicano Luís Echeverria, que governou entre 1970 e 1976, impôs o nome de José López Portillo ao PRI. Portillo foi eleito e governou entre 1976 e 1982. Mas sua gestão foi um desastre. O jornal The New York Times descreveu-a como um dos governos “mais incompetentes e corruptos do México”. Situação parecida foi experimentada na Argentina. Em 1973, Juan Perón, que já havia governado o país por duas vezes, estava impedido de se candidatar pela ditadura militar. Perón, então, impôs o nome de seu dentista, Héctor Cámpora, ao Partido Justicialista. Cámpora renunciou depois de apenas três meses no poder em meio a uma grave crise política.
Não há, evidentemente, uma relação direta entre a maneira de escolher um candidato e o seu desempenho no poder. Dilma virou candidata graças a uma rara conjunção de fatores. O principal deles talvez seja o processo de deterioração experimentado pelo PT nos últimos cinco anos. Aos 62 anos, nascida em Minas Gerais e educada no Rio Grande do Sul, Dilma se filiou ao PT em 2001 – apenas um ano antes da chegada de Lula ao poder. Ela chamou a atenção do presidente logo nos meses que antecederam sua posse. Nomeada ministra de Minas e Energia, Dilma viu tombar, um a um, os principais nomes imaginados por Lula para suceder-lhe, diante de suspeitas gravíssimas. Há dois anos, isolado em um deserto de homens e ideias, o presidente cogitou a candidatura presidencial de Dilma pela primeira vez. Mas a decisão final, tomada por Lula sem nenhuma consulta ao partido, foi comunicada à ministra e ao PT apenas em março do ano passado. O PT, no princípio, torceu o nariz. Alegou que ela era novata no partido e transformou o fato de Dilma jamais ter disputado uma eleição num obstáculo aparentemente intransponível.
Dois fatores foram decisivos para a virada que permitiu a aclamação de Dilma Rousseff como candidata oficial do PT. O principal é que, sem nenhuma outra alternativa viável e debilitado por sucessivas crises, só restou ao partido se curvar diante da vontade de Lula – um sinal inequívoco de que, quando precisa, o PT sabe ser pragmático e mandar às favas suas convicções mais íntimas. Não deixa de ser irônico que agora o partido que inicialmente a rejeitou dependa dela, tanto quanto dependeu de Lula em trinta anos, para continuar no poder. A outra razão é que, embora ainda não seja unanimidade no partido, Dilma começa a animar as claques petistas à medida que sobe nas pesquisas. Acompanhando o presidente em inaugurações de escolas, barragens e até canteiros de obras, a ministra passou de uma candidata desconhecida, com apenas 3% das intenções de voto, para uma forte concorrente, com 25%, marca que a coloca em segundo lugar, logo atrás do governador de São Paulo, José Serra. Tudo isso em menos de um ano. Lula é o presidente mais popular da história e seu governo é aprovado por oito em cada dez brasileiros. Um padrinho com essa força pode fazer de Dilma presidente. Uma vez no governo, porém, pode ser um risco deixá-la à própria sorte. Uma candidata sem o domínio do próprio partido e com o sempre chantagista PMDB na vaga de vice pode viver em constante crise política. Por isso, Lula precisará funcionar como um fiador da governabilidade. O apoio do mentor é imprescindível a uma candidata escolhida por um dedazo presidencial.
A escalada é mais íngreme daqui para a frente. Ela vai exigir que Dilma escape da órbita de Lula e do partido e se mostre capaz de ser presidente, e não apenas a escolhida do mestre eleitoreiro. Como se saberá se ela adquiriu essa força motriz e personalidade própria? Quando e se Dilma ultrapassar a marca de 30% das intenções de votos, essa pergunta estará respondida. Essa marca é a que o PT tradicionalmente obtém nas votações de amplitude nacional. É o capital político da sigla. A partir daí é com a candidata.
A disputa pela simpatia do eleitorado e a difícil missão de neutralizar o radicalismo de seu partido, porém, não são os únicos desafios de Dilma. Agora mesmo, a turma do PT defenestrada pelo mensalão enxerga em sua candidatura uma maneira de se reabilitar na vida política. O exemplo mais notório é o ex-ministro José Dirceu, réu no Supremo Tribunal Federal sob a acusação de comandar a quadrilha que desviava dinheiro público para subornar parlamentares aliados do governo. Dirceu era um dos personagens mais animados no congresso petista que aclamou Dilma. “Terei papel oficial na campanha”, dizia. “Mensalão, para mim, não é corrupção. É financiamento de campanha com caixa dois.” Outro mensaleiro, o ex-presidente da Câmara dos Deputados João Paulo Cunha, tem a mesma ambição. Quer ocupar a Secretaria de Comunicação do PT e palpitar sobre a estratégia eleitoral de Dilma. O risco de dar corda a essa turma é enorme. Nos últimos meses, Dirceu tem percorrido os estados governados pelo PSB para, na base da chantagem, impedir a candidatura presidencial de Ciro Gomes. O método não é apropriado – e os benefícios para Dilma são incertos. De acordo com as últimas pesquisas, a saí-da de Ciro facilitaria uma vitória de Serra já no primeiro turno. Ciro é um desses fatores imponderáveis, de trajetória errática capaz de produzir fatos que, como disse Dilma, “quando a gente pensa que já viu tudo, vê que não viu nada”.
A entrevista que se segue com a ministra Dilma Rousseff foi feita por e-mail e precedida de uma rápida conversa por telefone. Dilma respondeu a todas as perguntas enviadas, mas não aceitou réplicas a suas respostas
John Maynard Keynes, que a senhora admira, dizia alguma coisa equivalente a “se a realidade muda, eu mudo minhas convicções”. Como sua visão de mundo mudou com o tempo e com a experiência de ajudar a governar um país?
O Brasil superou uma ditadura militar e está consolidando sua democracia. A realidade mudou, e nós com ela. Contudo, nunca mudei de lado. Sempre estive ao lado da justiça, da democracia e da igualdade social.
Henry Adams, outro autor que a senhora lê com assiduidade, escreveu que “conhecer a natureza humana é o começo e o fim de toda educação política”. A senhora acredita que conhece o bastante da natureza humana, em especial a dos políticos, mesmo sem ter disputado eleições antes? Conheço bem o pensamento de Henry Adams para saber que nessa citação ele se refere à política no seu sentido amplo. Falando no sentido estritamente eleitoral da sua pergunta, acredito que minha experiência de mais de quarenta anos de militância política e gestão pública permite construir um relacionamento equilibrado com as diferentes forças partidárias que participarão desse processo eleitoral.
Os brasileiros trabalham cinco meses do ano para pagar impostos, cuja carga total beira 40% do PIB. Em uma situação dessas, faz sentido considerar a ampliação do papel do estado na vida das pessoas, como parece ser a sua proposta?
O que defendemos é a recomposição da capacidade do estado para planejar, gerir e executar políticas e serviços públicos de interesse da população. Os setores produtivos deste país reconhecem a importância da atuação equilibrada e anticíclica do estado brasileiro na indução do desenvolvimento econômico. Sem a participação do estado, em parceria com o setor privado, não seria possível construir 1 milhão de casas no Brasil.
Não fosse a necessidade de criar slogans e conceitos de rápida assimilação popular nas campanhas, seria o caso de superar esse debate falso e improdutivo sobre “estado mínimo” e “estado máximo”, correto? Afinal, ninguém de carne e osso com cérebro entre as orelhas vive nesses extremos fundamentalistas. Qual o real papel do estado?
Nos sete anos de nosso governo, ficou demonstrado o papel que vemos para o estado: induzir o desenvolvimento dos setores produtivos, priorizar os investimentos em infraestrutura em parceria com o setor privado, fortalecer e impulsionar a pesquisa e o desenvolvimento científico-tecnológico, assegurando ganhos de produtividade em todos os setores econômicos. Modernizar os serviços públicos buscando responder de forma eficaz às demandas da população nas áreas da saúde, educação, segurança pública e demais direitos da cidadania. Chamo atenção para a comprovada eficácia dos programas que criamos. O Bolsa Família, o Luz para Todos, o Programa Minha Casa Minha Vida, as obras de sanea-mento e drenagem do PAC, entre outros, produziram forte impacto na melhoria de vida da população e resultaram também no fortalecimento do mercado interno. Finalmente, gostaria de destacar o papel do setor público diante da crise recente, o que permitiu que fôssemos os últimos a entrar e os primeiros a sair dela. Garantimos crédito, desoneração fiscal e liquidez para a economia.
O presidente Lula soube manter aceso o debate ideológico no PT, mas rejeitou todos os avanços dos radicais sobre o governo. Como a senhora vai controlar o fogo dos bolsões sinceros mas radicais do seu partido – em especial a chama da censura à imprensa e do controle estatal da cultura?
Censura à imprensa e controle estatal da cultura estão completamente fora das ações do atual governo, como também de nossas propostas para o futuro.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso definiu a senhora como uma lua política sem luz própria girando em torno e dependente do carisma ensolarado do presidente Lula. Como a senhora pretende firmar sua própria identidade?
Não considero apropriado discutir luminosidade com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
A oposição certamente vai bater na tecla da personalidade durante a campanha, explorando situações em que sua versão de determinados fatos soaram como mentiras. Como Otto von Bismarck, o chanceler de ferro da Alemanha, a senhora vê lugar para a mentira na prática política?
Na democracia não vejo nenhum lugar para a mentira. Como já disse em audiência no Congresso Nacional, em situações de arbítrio e regimes de exceção, a omissão da verdade pode ser um recurso de defesa pessoal e de proteção a companheiros.
Qual o perfil ideal de vice-presidente para compor sua chapa?
Um nome que expresse a força e a diversidade da nossa aliança.
O presidenciável Ciro Gomes, aliado do seu governo, afirma que a aliança entre o PT e o PMDB é um “roçado de escândalos semeados”. A senhora não só defende essa aliança como quer o PMDB indicando o vice em sua chapa. Não é um risco político dar tanto espaço a um partido comandado por Renan Calheiros, José Sarney e Jader Barbalho?
Não se deve governar um país sem alianças e coalizões. Mesmo quando isso é possível, não é desejável. O PMDB é um dos maiores partidos brasileiros, com longa tradição democrática. Queremos o PMDB em nossa aliança.
O Brasil está cercado de alguns países em franca decomposição institucional, com os quais o presidente Lula manteve boas relações, cuidando, porém, de demarcar as diferenças de estágio civilizatório que os separam do Brasil. Como um eventual governo da senhora vai lidar com governantes como Hugo Chávez ou Evo Morales?
Lidaremos com responsabilidade e equilíbrio com todos os países, respeitando sua soberania e sem ingerência em seus assuntos internos. É esse, também, o tratamento que exigimos de todos os países, em reciprocidade.
Os dois figurinos de Dilma
Radical no discurso, mas quase sempre pragmática na ação, a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, joga para a plateia petista sem assustar o empresariado
Desde que entrou para o governo, Dilma Rousseff desenvolveu um código de conduta particular. Nele, um discurso ideológico é quase sempre seguido por uma decisão pragmática que, não raro, acaba contrariando sua fala. Especialistas enxergam na prática uma tentativa da ministra, que pertenceu ao PDT por 21 anos, de reafirmar publicamente sua “identidade petista”. Em outras palavras, o figurino radical de Dilma é para petista ver. O outro, norteado pela consciência de que o capitalismo produz riqueza, é o que ela usa na hora de pôr a mão na massa. De seis episódios nos quais teve atuação marcante no governo, a ministra migrou do discurso de viés estatizante para a linguagem de mercado em cinco (veja o quadro). A exceção ficou por conta da definição das regras de exploração do petróleo na camada do pré-sal. Na contramão dos episódios anteriores, ela enviou ao Congresso proposta que veta a participação de empresas privadas na parte principal do negócio e dá à Petrobras o monopólio da operação. Ali a contradição é apenas aparente. Na essência, a mudança de rota está em franca sintonia com o pragmatismo à la Rousseff. Afinal de contas, numa campanha em que o discurso nacionalista será estridente, “o petróleo é nosso” é um slogan que será explorado até a última gota.