Luiz Cláudio Cunha: Alarme falso, pânico de verdade
Por Luiz Cláudio Cunha, no Observatório da Imprensa
No curto espaço de cinco anos, o repórter da Rede Globo Guilherme Portanova, 35, viveu dois momentos de pânico extremo e a dupla sensação de morte iminente. Na primeira vez, em 2006, na cidade de São Paulo, escapou ileso graças a uma oportuna providência da Globo. Na segunda vez, na sexta-feira (14/1), na cidade fluminense de Nova Friburgo, sobreviveu enlameado exatamente por culpa da Globo.
Recém-transferido como estrela emergente da RBS de Porto Alegre, sua terra natal, para a Globo de São Paulo, Portanova foi seqüestrado em agosto de 2006 pelo bando criminoso paulista PCC (Primeiro Comando da Capital), que exigia a exibição de um vídeo criticando o sistema penitenciário brasileiro, sob pena de executar o repórter. Seguindo normas do International News Safety Institute (INSI), de Bruxelas, a Globo cedeu.
Cortou cenas originais com armas de guerra e granadas e exibiu só três minutos de um mascarado que pedia revisão de penas e melhoria nos presídios. O vídeo foi veiculado apenas em São Paulo no início da madrugada de domingo, 13 de agosto, no intervalo do “Supercine”, quando o Ibope da emissora não passa de 10 pontos (o que equivale a 550 mil domicílios sintonizados). Na madrugada seguinte, Portanova foi libertado após 40 horas de cativeiro, confessando depois o temor que sentiu de ter o mesmo fim de seu colega Tim Lopes, torturado e incinerado pelo narcotráfico no Rio, em 2002.
Ele se assustou quando os bandidos lembraram o precedente carioca: “Eu pedi para ser executado… estava em pânico puro, medo total de que fosse uma morte lenta… eu pensava em minimizar a possibilidade de uma morte dolorosa… Eu disse: quero que minha morte seja feita com capuz na cabeça e uma bala só… não foi por heroísmo, foi por pânico com a imagem do Tim Lopes”, confessou Portanova à Folha de S.Paulo, dois dias após ser libertado.
Boato vazio
Transferido para Brasília logo após o sequestro, Portanova era um dos reforços convocados dias atrás pela Rede Globo para cobrir a maior tragédia nacional: a enxurrada que já matou mais de 700 pessoas na região serrana do Rio de Janeiro. Em Nova Friburgo, a cidade mais devastada, Portanova viveu na sexta-feira (14) o seu segundo momento de pânico. Agora, com a ajuda da emissora, encarnou um dos mais constrangedores momentos do telejornalismo brasileiro. Naquela manhã de sexta, a cidade que teve metade dos mortos da tragédia viveu momentos de puro terror: a notícia do estouro de uma barragem deixou em polvorosa uma população já abalada pelo dilúvio das últimas horas.
O telejornal Hoje, das 13h, entrou ao vivo de Nova Friburgo. E a repórter Flávia Januzzi apareceu na telinha entrevistando um dos personagens mais apavorados da cidade: o próprio Guilherme Portanova (veja vídeo em Globo.com). Durante 2 minutos e 27 segundos, uma eternidade no mundo da TV, o repórter da Globo discorreu sobre o seu próprio medo, em vez de mostrar o susto da comunidade que ele deveria reportar aos telespectadores. Um resumo do terror de Portanova:
“Passamos boa parte desta manhã tentando salvar a vida. Tínhamos trabalhado até as 5 da manhã. Estava dormindo no hotel quando ouvimos sirenes nas ruas, a população inteira correndo no mesmo sentido, corriam para salvar a vida, para deixar a cidade, fugindo de carro, fugindo a pé… havia gente brigando a soco por um espaço na caçamba de carros ou caminhonete… fomos avisados para deixar o hotel, que fica a uma, duas quadras do rio, e não sabíamos para onde fugir… Eu perguntei para pessoas na rua, identificados como do governo do estado: ‘O que é melhor? Fugir da cidade, a pé, ou subir num edifício?’ Ele respondeu: ‘A gente não sabe se um edifício é seguro, a gente não sabe o que aconteceu’. Eu coloquei numa mochila o que era essencial para a sobrevivência, para fugir. Botei o computador, que funciona via celular… não trouxe nem roupa, nem biscoito pra comer… Botei o que era mais leve para fugir do hotel…
“Fugimos e nos perdemos no meio da confusão. Foi uma manhã de desespero… No momento do pânico, tinha gente fugindo do hospital com o soro ainda na veia… Parte da nossa equipe, do Rio de Janeiro, subiu um morro, aqui atrás da prefeitura, e se escondeu num cemitério que fica numa área alta, para poder escapar… O movimento era completamente ilógico, como se explicou depois, porque o que tem de volume de água armazenada não seria possível nem para lavar uma calçada aqui no centro, muito mais para inundar a cidade… A sensação que eu tinha era de olhar à minha esquerda, na rua, e a qualquer momento eu ia ver a onda engolindo o centro da cidade. A gente correu, na verdade, para salvar a vida”.
Em boa hora, a repórter constrangida que entrevistava o repórter amedrontado interrompeu esta tragédia pessoal para esclarecer: “Agora, é bom a gente registrar que tudo isso não passou de um boato, né, Guilherme?, um pânico coletivo”. Na sequência, aparecem imagens de gente assustada, correndo, diante de um microfone empunhado, aparentemente, por uma repórter da Globo. Duram apenas 35 segundos, quatro vezes menos do que apavorado depoimento, sem imagens, do Portanova que nada reportava. Alguém mais sensato da Globo percebeu o ridículo daquela aparição, que foi expurgada do Jornal Nacional da noite de sexta-feira (14). Renata Vasconcellos, que ancorava o JN ao vivo desde o local da tragédia, dedicou enxutos 12 segundos para o boato de Nova Friburgo – e nem um único frame para o assustado repórter.
Portanova, que apesar do pânico é um profissional competente, sabe que a imagem é a matéria-prima essencial do jornalismo de TV. Ele subiu a serra para ouvir o drama dos flagelados e registrar as imagens da tragédia. Nenhum susto pessoal pode ser maior, nem mais genuíno, do que o relato da população de um dos lugares turísticos mais bonitos do país subitamente transtornado pela lama, pela enxurrada, pela morte. O apavorado depoimento do repórter só teria sentido se fosse acompanhado pelo movimento nervoso da câmara de TV, reproduzindo o ambiente de terror coletivo que ele sentiu, mas esqueceu de registrar. Portanova tinha todo o direito de sentir medo, como qualquer um de nós, mas naquele exato momento tinha uma delegação especial: reportar tudo o que via e sentia, apesar do susto, com o inseparável instrumento de trabalho que define a sua profissão – a câmara e o microfone do repórter de TV.
Quem ouvia seu longo, desesperado depoimento no jornal Hoje, imaginava que viria logo depois a sequência de imagens desta espantosa experiência. E não veio nada… O relato alarmado de Portanova, sem o testemunho da câmara de TV, não tinha a menor relevância, diante do drama infinitamente maior, e verdadeiro, que afligia a gente da serra e emocionava os telespectadores do resto do país. Pior: soava ridículo, por ser a confissão explícita de um sobressalto apressado, boboca, que foi desmentido em poucos minutos como um alarme falso, um boato vazio mas assustador que fazia sentido entre a população traumatizada, não na equipe treinada da maior rede de TV do país.
Lição útil
Agora todo o país sabe que a equipe de Portanova, longe do microfone e com a câmara desligada, estava menos atenta às suas obrigações jornalísticas e mais preocupada em fugir a pé ou subir mais alguns andares do hotel, carregando a mochila sem roupas e sem biscoito. Os colegas do Rio, como ele mesmo revelou, esconderam-se num cemitério, em cima de um morro. Essa, certamente, não era a pauta imaginada pelo comando da redação da Globo.
Um inacreditável cochilo editorial levou a Globo a reverberar no seu jornal do meio-dia a autoconfissão desse naufrágio de Portanova em Nova Friburgo, tratando como virtude o que, sob qualquer critério, deveria ser criticado como mau exemplo de jornalismo. Tanto que a longa fala de Portanova foi soterrada à noite no Jornal Nacional, o mais importante do país.
O que tornou ainda mais embaraçoso este escorregão do festejado jornalismo global foi o belo desempenho de seu maior concorrente, a Rede Record. Na mesma Nova Friburgo que ressuscitou o medo de morrer de Portanova, a repórter Vivian Carvalho, do Jornal da Record, deu um banho de jornalismo e coragem, cumprindo com brilho a tarefa primordial de uma equipe de TV: contar e mostrar o que é, como é, quando é, com as imagens na tela que sustentam o que o repórter conta e sente. Vivian aparece de corpo inteiro, com capa de chuva, mostrando o pânico na rua, as pessoas correndo assustadas, repetindo a versão alarmista que ouviram e repassam com um pavor amplificado (veja aqui).
A repórter da Record ouve alguém que abandonou o caminhão, aterrorizado com a onda assassina que viria de algum lugar. Vivian termina a entrevista e diz ao homem assustado: “Então corre, pode ir!”.
Ele corre e ela fica, certa de que esta é a sua missão – contar o que o repórter vê e mostrar o que os outros sentem. “Todo mundo tenta se salvar, uma situação desesperadora”, diz Vivian, voz tensa, mostrando com a câmara as pessoas descalças, transidas de medo. A repórter não esconde o seu próprio medo: “A gente fica muito emocionada”. Ela chora e não perde o olho do telespectador: “Desculpem. A cidade destruída, as pessoas já não têm mais casa, não têm mais uma vida, não têm mais uma família… É uma situação de pânico, de medo”. A repórter da Record descreve e mostra, com a força da imagem e com a emoção de seu próprio choro, o drama humano desatado pelo boato que desliza pela cidade como os morros que a cercam. É o som do desespero e a fragilidade humana pela força insuperável da imagem da TV.
É um drama vivo, tocante, que dura apenas um minuto e 47 segundos na tela da Record, bem menos do que o tempo que a mesma história ocupou, burocrática, na tela da Globo.
A diferença reside nisso: o relato de Vivian mostra a emoção que ela viu, ao passo que o depoimento de Portanova mostra apenas o que ele sentiu.
Em quem o telespectador deve confiar mais? Quem mostrou mais coragem? Quem foi mais fiel à sua missão de testemunha ocular da história?
Uma lição útil dessa tragédia é que o repórter é e será sempre menos importante do que a notícia. Seus medos, humanamente aceitáveis, serão sempre irrelevantes diante dos sentimentos mais amplos e mais importantes do drama da vida, que cabe ao jornalista apreender, traduzir e comunicar. Humildemente.
Nenhum repórter subiu a serra do Rio para salvar a própria vida.
Muito menos para afogar o jornalismo.