Lula: “Deixo um País preparado”

Em entrevista exclusiva à Época, o presidente da República fala de seu governo, de sua mãe, de Barack Obama, do sindicalismo, do tamanho do Estado - e do futuro do Brasil

Se o Brasil é um país mais perto do futuro, não há dúvida de que pelo menos o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já chegou lá. Seu governo exibe os mais altos índices de aprovação popular de nossa história política. Nas aparições internacionais, Lula acumula sinais de prestígio crescente com os chefes de Estado e é personagem de reportagens elogiosas dos principais veículos da imprensa mundial. Graças a um sistema financeiro fortalecido por uma política de austeridade que contrariou os principais dogmas do PT, o Brasil de Lula enfrenta a crise global com um desemprego imenso e recessão em vários setores da economia – mas o ambiente é menos sofrido e menos pessimista que nos países centrais. De olho no futuro imediato de sua herança política, que defenderá nos palanques de 2010, Lula recebeu ÉPOCA para falar do Brasil de 2020. De bom humor, chegou à sala de reuniões de seu gabinete pessoal, montado no Centro Cultural Banco do Brasil – para onde foi transferido o governo enquanto o Palácio do Planalto está em reforma -, falando de futebol. Disse que seu sonho, ao deixar o governo, é virar cartola do Corinthians. Depois, Lula concedeu uma entrevista que durou uma hora e 18 minutos. Nas páginas seguintes, uma seleção dos principais trechos.

ÉPOCA – O senhor é presidente do Brasil desde 2003. Como é possível governar o país e pensar no futuro ao mesmo tempo?
Luiz Inácio Lula da Silva – Nós, brasileiros, nascemos pensando no futuro. Na minha vida inteira, pensei no dia seguinte e não no dia anterior.
 
ÉPOCA – E em relação ao País…
Lula – Meu governo sempre pensou no futuro e faz isso até hoje. Vou dizer uma coisa bem ousada. Ouso dizer que não existe no mundo hoje nenhum país com a quantidade de obras simultâneas que tocamos no Brasil. Estou falando de eclusas, hidrelétricas, saneamento básico, rodovias, aerovias e aeroportos, de internet, do programa habitacional… Posso pegar o Rio de Janeiro como exemplo. Duvido que, em algum momento nos últimos 30 anos, o Rio tenha tido tantas obras feitas com dinheiro federal. Não quero que, daqui a dez anos, o Rio continue conhecido como a cidade que tem a favela da Rocinha, o Complexo do Alemão, a favela Pavão e Pavãozinho. Quero que esses lugares sejam vistos como bairros. Isso é pensar no futuro.
 
ÉPOCA – E o efeito da crise internacional?
Lula – Nós lançamos o PAC no dia 22 de janeiro de 2007, como um programa para o futuro. Não é para o meu governo. Essa crise é mais uma oportunidade de pensar no futuro, de definir os investimentos, em vez de ficar estagnado, chorando, lamentando as deficiências deste ou daquele setor. No capitalismo, sempre vai haver setores que vão bem e outros que vão mal. O importante é a média.
 
ÉPOCA – O senhor poderia dar um exemplo de como age pensando no futuro?
Lula – Há dois meses, a direção da Petrobras deveria anunciar a prorrogação de seu programa de investimentos. O que estava previsto para 2013 seria prorrogado para 2017. Fiquei sabendo, mandei chamar o conselho da empresa no Salão Oval do Palácio do Planalto e decidi que a empresa não iria mais fazer isso. Deveríamos fazer mais sacrifícios, mais empréstimos e concluir as obras em andamento. Neste momento de crise, você garante o futuro quando faz para a frente.
 
ÉPOCA – O senhor está preparando algo para quem for sucedê-lo?
Lula – No ano que vem, eu quero apresentar um PAC para 2010 e 2014. Não estarei mais no governo. Será uma prateleira de projetos aprovados para quem vier depois. A pessoa pode até não querer fazer. Mas, se quiser fazer, eles estarão lá. Não vai acontecer o que aconteceu comigo. Quando cheguei aqui, o Ministério do Planejamento não tinha um projeto aprovado. Tivemos de começar do zero: projeto básico, projeto executivo, licença prévia, uma série de providências que demoram três anos. Hoje, no Brasil, nenhum governante consegue fazer uma obra estruturante num mandato de quatro anos. Preste atenção nisso: se Juscelino Kubitschek fosse presidente hoje e decidisse fazer Brasília, em cinco anos ainda não teria conseguido a licença para fazer a pista do aeroporto para descer de teco-teco. Nos 30 anos em que este país ficou estagnado, criamos instrumentos de fiscalização e de controle, mas nada para investimento e produção. Estamos cercados por nós mesmos. É um emaranhado absurdo. Podem ser cuidados necessários. Não questiono isso. Mas, se o Tribunal de Contas da União interrompe uma obra por um ano, já se foi um quarto do mandato. Eu quero deixar este país preparado. O nosso projeto é deixar 32 mil megawatts preparados. Depois, é só começar a obra. Se cada presidente deixar um conjunto de obras estruturantes para o sucessor, o país dará um salto de qualidade nos próximos 20 anos. Levará uma geração. Não estou falando de uma ponte que o sujeito pode querer fazer ou não. Estou falando das prioridades que todos concordam que é preciso resolver.

ÉPOCA – Por sua história, o senhor venceu muita coisa. Hoje, é o presidente mais popular da história. O que move o senhor? O senhor é um otimista por temperamento? Ou é um pessimista que trabalha muito?
Lula – Sou otimista. Se não fosse otimista, não teria contribuído para mudar a história do movimento sindical brasileiro. Naquele tempo, qual era o discurso do Partidão (o antigo PCB, hoje PPS, partido que faz oposição a seu governo)? Eles diziam que eu não iria conseguir mudar nada, porque a legislação em vigor não permitia. Diziam: “Você não poder fazer nada, vai entrar no sindicato e ficar num círculo vicioso…”. Nós fizemos greve passando por cima da lei de greve, fizemos um novo sindicalismo passando por cima da lei de segurança nacional, fazíamos discurso em porta de fábrica. Na minha vida, nunca houve espaço para reclamar.
 
ÉPOCA – O que fez o senhor pensar assim?
Lula – Talvez eu tenha aprendido isso com a minha mãe. Lembro de momentos em que ficávamos sentados eu, minha mãe, Frei Chico (um de seus seis irmãos), minhas duas irmãs, lá em casa, em São Caetano. Todo mundo desempregado, por volta de 1965, 66. Não tinha o que colocar no fogo para cozinhar. E eu nunca vi minha mãe reclamar. Nunca a vi chorar. Eu não tenho tempo de reclamar. Minha reclamação é de cobrança dos companheiros. Eu penso assim: os obstáculos existem para a gente superá-los. Quem me acompanha de perto sabe que eu não tenho tempo para ficar (dizendo) “não dá para fazer”. (Eu digo): “Vamos trabalhar”.
 
ÉPOCA – Mas como se faz isso?
Lula – Aqui no governo havia o hábito de um ministro jogar a culpa no outro. “Eu não estou fazendo tal coisa porque o Meio Ambiente fez isso… Não faço isso por causa daquilo.” Então nós adotamos o toyotismo. Coloca todo mundo em volta de uma mesa: a Funai, o Ibama, o Ministério do Meio Ambiente, das Minas e Energia, para resolver o problema na hora. Às vezes, alguém fala que tem um governador que está fazendo não sei o quê. Na hora eu pego o telefone: “Tô aqui reunido com os ministros, e o ministro Lobão (Edison Lobão, das Minas e Energia) está dizendo que você não fez tal coisa.O ministro Minc (Carlos Minc, do Meio Ambiente) está dizendo que a culpa é do Estado”. Se não for assim, não funciona. Eu peço uma coisa para você. Aí você fica dez dias me enganando. Aí pede para outro, ele te engana mais dez dias, pede para outro que te engana por mais dez dias. E assim passa um mês, passa um ano, e as coisas não acontecem. Ontem eu tirei quase R$ 600 milhões do Geddel (Geddel Lima, ministro da Integração Nacional). E por quê? Tem problema com o governador de Estado, com a Funai, com o Meio Ambiente, com o Tribunal de Contas da União, o prefeito… Estou precisando gerar emprego, fazer muita coisa. Por Deus do céu, não tenho tempo para pessimismo em minha vida.

ÉPOCA – Qual é o maior legado de seu governo para o futuro do Brasil?
Lula – Quero deixar uma nova relação que o governo conseguiu estabelecer com a sociedade. Parte da sociedade se sente responsável pelo meu governo. Nestes sete anos, já fiz mais de 50 conferências nacionais: conferência de habitação, da saúde, de GLTB (Gays, Lésbicas, Transexuais e Bissexuais), de educação. A única conferência que falta fazer é a de comunicação, que vamos fazer neste ano. Vai ser muito difícil mudar a relação que construí com a sociedade. É uma relação de confiança. As pessoas têm de perceber que um governo não é feito para quem governa. As ideias não têm de ser suas, necessariamente. Talvez essa seja uma vantagem minha. Quando o cara é bem formado intelectualmente, acha que já sabe tudo o que se apresenta a ele. Não tem nem ouvido. Como eu não sei muita coisa, tenho uma capacidade de ouvir muito grande. Seria muito melhor para o mundo se os governantes aprendessem a ouvir.

ÉPOCA – Quem o senhor ouviu?
Lula – Considere a minha relação com o movimento sindical. É uma relação de lealdade e confiança. Se a pessoa que está do outro lado confiar em você, o problema está resolvido. O duro é que, durante muito tempo, a sociedade não tinha razão para ter confiança. Eu estabeleci essa lógica. O grande legado que um presidente deixa para a sociedade é a relação que estabeleceu com ela. Lembro do horror que causei quando fui participar de um congresso GLTB. Minha assessoria estava preocupada, tinha quem dissesse que eu não deveria ir. Eu achava que deveria. Porque, na hora de pagar imposto, ninguém quer saber se o sujeito é homossexual ou travesti. Na hora de votar, nunca vi um candidato chegar na fila e dizer: “Olha, eu não quero seu voto”. Se é assim, por que não tratar todo mundo igual?

ÉPOCA – O que o petróleo representa para nosso futuro?
Lula – O Brasil não pode, no futuro, imaginar que vai exportar petróleo e participar da Opep. O Brasil tem de ser exportador de derivados. Vamos extrair e refinar a gasolina de qualidade, o diesel de qualidade e, assim, gerar riqueza aqui dentro. Também vamos desenvolver uma forte indústria petroquímica. Se não for a melhor do mundo, estará entre as primeiras. Terceiro: vamos criar um fundo para cuidar da educação e da pobreza. Daqui a 20 anos, a gente poderá saber o que esse petróleo que nós encontramos deu de qualidade de vida para o povo brasileiro.

ÉPOCA – O senhor não tem frustrações? Na educação, por exemplo…
Lula – Estou feliz com o que fazemos em educação, mas eu poderia estar mais feliz.Entre 1909, quando Nilo Peçanha fez a primeira escola técnica do país, em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, e 2003, foram feitas outras 140 escolas técnicas. Isso em 94 anos. Em oito anos, nós vamos fazer 214. Só neste ano vou inaugurar cem. Outra coisa: basta imaginar o significado para o futuro do ProUni (programa de crédito para financiar alunos carentes em universidades privadas), com 535 mil alunos. Ou o significado do ReUni (programa de expansão de vagas das universidades federais). Nós queríamos aumentar o número de 12 alunos por professor, em média, para 18 alunos por professsor, em média. A esquerda contemporânea, diferente da esquerda do meu tempo, que era mais madura, não queria. Invadiu a reitoria, quebrou vidro. Sabe o que o Re-Uni significou? Até então, em 54 universidades federais, tínhamos uma renovação anual de 113 mil alunos. Neste ano, já tivemos uma renovação de 227 mil. Fora 14 universidades federais e 98 campus avançados pelo interior. Até Garanhuns (cidade natal de Lula) já ganhou universidade.

ÉPOCA – Mas há um prazo para investir em educação. Há uma curva demográfica favorável, que precisa ser bem aproveitada para nossa educação dar um salto…
Lula – Um problema, no Brasil, é que muitas vezes não acreditamos em nós mesmos. Nesta semana, tem um fato novo na história do país, pouco divulgado. O Brasil passou a Rússia em publicação de trabalhos científicos nas revistas especializadas. Somos o 13º país do mundo hoje. Criamos um PAC de ciência e tecnologia, que é o primeiro projeto de ciência e tecnologia que não é do ministro Sérgio Rezende nem do presidente Lula. Nós ouvimos a sociedade, e a comunidade científica aprovou, por unanimidade. Acho que sou o único presidente da história do Brasil que participou de uma reunião da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) onde todos os presentes estavam de acordo com o governo.

ÉPOCA – Mas, no ensino fundamental e no ensino médio, o país está mal.
Lula – O último Enem mostrou uma certa fragilidade nos Estados. Mas há um número bastante animador, que mostra a diferença na qualidade do ensino das escolas federais, que são poucas, para as escolas estaduais. Isso nos leva a fortalecer a parceria com os Estados. Há uma melhora. Uma melhora lenta, mas há. Em educação, você precisa de quatro anos para perceber a melhora de uma criança. As escolas federais vão balizar a qualidade do ensino no Brasil. Vão ser referência. Quando a sociedade começar a falar que vai para tal escola porque é melhor que tal (outra), aquele diretor da escola tal vai querer melhorar a escola.

ÉPOCA – Alguns dizem que nossas crianças não valorizam a escola…
Lula – Vou contar uma história milagrosa. Em 2004, recebi a visita de uma senhora do Instituto Nacional de Matemática Aplicada. Ela fazia as Olimpíadas de Matemática. Eram 274 mil alunos participando, todos de escolas privadas. Fiquei interessado. A Argentina tinha 1 milhão de alunos. Os Estados Unidos, 6 milhões. Eu disse: “Vamos fazer na escola pública”. Ela era a favor, mas outras pessoas diziam: “Ah, alunos da escola pública vão para escola para comer, só pensam na merenda”. Abrimos a inscrição e apareceram 10 milhões de crianças. No ano seguinte, foram 14,5 milhões. Em 2008, 18 milhões. Damos medalha de ouro, de prata, de bronze… Vamos dar bolsa, vamos falar com as empresas para contratar esses meninos. São gênios. Como um país pode prescindir de crianças que têm um potencial tão extraordinário?

ÉPOCA – A função de governar mudou?
Lula – Nos anos 60 e 70, os governantes faziam sempre a mesma coisa: passavam necessidade nos primeiros dois ou três anos para juntar dinheiro e depois fazer o sucessor. Isso acabou. O governante hoje tem de governar para o neto. Tem de pensar no mundo em que seu neto vai sobreviver, e não no mundo dele.

ÉPOCA – Como conciliar curto prazo com longo prazo no governo?
Lula – Nossa discussão da década de 80 era se a gente ia melhorar a vida do povo ou tinha de esperar o socialismo para isso. Você tem de ter uma mistura. Precisa de um projeto de longo prazo, mas não pode descuidar do dia a dia. Não pode só falar em longo prazo para quem passa fome.

ÉPOCA – O senhor acredita que teremos um sistema político melhor?
Lula – Acredito. Já é quase um consenso entre as pessoas que fazem política que precisamos de uma reforma profunda. Os partidos não podem ser aquilo que são hoje. A reforma é inexorável. A coisa mais barata para uma eleição neste país é você aprovar o fundo público de campanha. Não dá para você ficar numa promiscuidade entre o político e a classe empresarial. As coisas têm de ser mais transparentes. Os partidos têm de ter força. Você tem de negociar com o partido, não com pessoas. Eu acerto uma coisa com um deputado em nome do partido, aí vem um (outro) deputado e diz: “Não, não era isso”. Você precisa de instrumentos de negociação. E para isso a questão da lista é importante. Porque aí o presidente tem com quem negociar. Nós mandamos sete propostas para o Congresso. Eu não queria. Passei muito tempo achando que não era uma coisa do Executivo, mas do Legislativo. Quando vi que eles não faziam, decidi que devia mandar. Se quiserem utilizar, utilizam.

ÉPOCA – A conversa sobre economia mudou. Antes da crise, falavam-se em Estado mínimo e desregulamentação. Agora não. O mundo vai ficar mais intervencionista?
Lula – Acho esse debate equivocado. A questão não é saber se o Estado deve ser mais ou menos intervencionista. Não defendo um Estado gestor. Defendo um Estado regulador e indutor. Quando você faz um debate ideologizado, não faz nem um nem outro. É um crime tentar negar o papel do Estado e dizer que o mercado deve regular tudo. Somente o Estado tem a competência e a obrigação de pensar em todos. No setor econômico, cada um está pensando em se salvar. Quem tem de pensar no conjunto da sociedade é o Estado. É ele que tem de estar olhando para saber como é que vai fazer para alavancar os de baixo. Fico muito feliz que a teoria do Estado mínimo e do mercado máximo ruiu. E isso não foi na Venezuela, na Bolívia ou no Paraguai. Foi nos Es-ta-dos-Uni-dos-da-A-mé-ri-ca-do-Nor-te. Na Alemanha. Na França. Na Inglaterra. Quando o Lehman Brothers quebrou, quem se tornou o salvador da pátria? O Estado. A GM já não sabe mais nada. A Ford já não sabe mais nada. Os banqueiros também não. Quem sabe? O Estado. Isso aconteceu por uma providência de Deus, que restabeleceu a normalidade do papel de cada um.

ÉPOCA – O que o senhor aprendeu com a crise?
Lula – Passei três meses angustiado porque não conseguia entender por que o preço do petróleo tinha chegado a US$ 150 o barril. A Petrobras não me explicava. A resposta do Chávez (Hugo Chávez, presidente da Venezuela) não me convencia. Todo mundo falava que era a China. Aí sobe o feijão, sobe a soja, sobe o milho.Você perguntava, e diziam: biodiesel. O que descobrimos? Quando a crise do subprime ficou aguçada, os especuladores imobiliários resolveram aplicar em commodities. Não era a China que consumia mais soja. Era o mercado futuro. Como a saca de 60 quilos de feijão saiu de US$ 90 para US$ 280, se chinês nem come feijão? Era o mercado futuro. E isso possibilitou o G20.

ÉPOCA – Como foi essa experiência?
Lula – Em 2003, eu participei do G8, em Évian (cidade francesa), a convite do Chirac (Jacques Chirac, então presidente da França). Quando entrei naquela reunião, eu parecia um patinho molhado. Estavam aquelas figuras que eu via na televisão:Chirac, Bush (George W. Bush, então presidente dos EUA), Tony Blair (então primeiro-ministro britânico). Eu falava: “O que é que eu tô fazendo aqui, rapaz?”.

ÉPOCA – O que mudou depois?
Lula – Percebi que aqueles homens, todos importantes, tinham um papel pequeno como governantes. Estavam acomodados à ideia de que o mercado fazia tudo e resolveria tudo. A crise mostrou que o mercado é extremamente importante, mas é preciso um grande fiscal sobre o sistema financeiro. É preciso uma nova orientação para os fundos multilaterais de investimento. Por que o FMI sabia tudo sobre o Brasil, dava palpite em tudo, mas não dava palpite nos Estados Unidos ou na Europa. Eu senti no G20, agora, diferentemente do G8, uma humildade extraordinária. Ninguém sabia de nada. Minha mãe dizia que, quando um vizinho aparece com um problema, você tem solução para tudo. Mas, quando o problema é dentro da sua casa, você não sabe nada. Quando a crise saiu dos países pobres e chegou aos países ricos, já não tinham lições para dar. E aí eu acho que o Brasil, com humildade, sem nariz empinado, sem arrogância, pode fazer valer o seu aprendizado.

ÉPOCA – A reputação brasileira nunca esteve tão em alta na imprensa internacional e em encontros como o G20. Por quê?
Lula – O importante no G20 foi a composição, bastante heterogênea. Eram mais países, e não eram os de sempre. Os países ricos não estavam arrogantes. E o Brasil tinha um sistema financeiro mais ajustado que o deles. O PAC já existia antes da crise. Foi com essa condição que nós entramos no G20. Prezo muito minhas relações pessoais. O Gordon Brown sempre falou bem de mim e do Brasil. Ele defendia o Brasil. Tive uma relação boa com o Bush. Com o Obama, tenho uma relação muito incipiente, ainda.

ÉPOCA – Qual é a sua impressão dele?
Lula – Ele é a nossa cara, a cara do Brasil. O fato de os Estados Unidos elegerem um negro é uma coisa extraordinária. Eu falei para o Obama: eleger você nos Estados Unidos e o Evo Morales na Bolívia é o máximo da democracia no mundo. O Obama tem a cara boa. Minha mãe dizia: “Se você quer conhecer um homem, olha nos olhos dele”. As pessoas mostram que são boas.

ÉPOCA – Como foram os encontros com Obama?
Lula – Em Trinidad e Tobago, ele estava preocupado. Eles tinham muitas dúvidas sobre o comportamento da esquerda latino-americana. Conversei com o Obama antes e expliquei que não teria problema algum. Disse que todo mundo é tranquilo, é maduro. Quase falo para o Obama:”Você é o cara”. Disse que nós queremos uma relação de parceria. Embaixador americano não pode se meter em eleição de outros países. Disse que ele pode resolver o negócio de Cuba. Não existe mais explicação para esse maldito bloqueio. Ele chegou meio tenso, mas depois a reunião transcorreu como se fôssemos velhos amigos. Em política, tem uma coisa que não pode ficar fora da mesa, que é a relação pessoal. O Obama é a chance que nós temos.

ÉPOCA – O senhor tinha boa relação com Bush. Quem seria melhor para o Brasil?
Lula – Não quero cometer hoje o mesmo erro que cometi em 1980. Naquele ano, quando eu estava no primeiro aniversário da revolução sandinista, o (Ronald) Reagan venceu o (Jimmy) Carter nas eleições dos Estados Unidos. Eu disse: “Saiu a Coca-Cola, entrou a Pepsi-Cola. É a mesma coisa”. Não é a mesma coisa. Em nossa reunião, propus a criação de um Conselho de Combate ao Narcotráfico e falei para o Obama: “Eu quero tirar de suas costas a responsabilidade de cuidar do narcotráfico na América do Sul. É um problema nosso”.

ÉPOCA – O senhor é a favor da liberação das drogas?
Lula – Confesso que eu acho que liberar não ajuda. Temos um debate acadêmico no Brasil. A droga, num primeiro momento, deve levar as pessoas ao conforto. É como o protecionismo econômico. Vai dar um conforto momentâneo, mas depois vai criar problemas. Temos de ser muito duros no controle das fronteiras, agir em conjunto com outros países. Temos de ser duros com o traficante e, aí, diminuir o uso. Estou convencido de que, sem a família, você não consegue consertar as pessoas. Se não envolver pai e mãe, irmãos para cuidar daquele jovem, não vai resolver o problema. A quantidade de informação deformada que esses meninos recebem é muito grande. Nos videogames, nos filmes que veem na TV, as pessoas começam a matar às 5 da manhã e terminam às 5 da manhã do dia seguinte. Acho que isso provoca as pessoas.

ÉPOCA – Como o senhor vê o papel brasileiro no cenário internacional futuro?
Lula – No dia 25 de janeiro de 2003, fui a Davos. Conversei com muita gente, ouvi muito. Aquela coisa de Davos. Na volta, no avião, falei para o Celso (Amorim, ministro das Relações Exteriores): “Ô, Celso, eu acho que nós temos de mudar a geografia comercial do mundo. Podemos mudar a geografia política.Tem um campo imenso que nós não estamos explorando”. Todos nós damos de barato que são os Estados Unidos e a Europa que mandam no mundo. Temos de fazer algumas coisas importantes. A primeira é fortalecer a relação com a América do Sul. Só terei vez no quintal dos outros se meu quintal estiver bem arrumado. Segunda: a gente tem de começar a dar importância à África. Terceira: a gente tem de dar importância para o Oriente Médio. E aí viajei para todos os países da América do Sul. Viajei para 20 países africanos. Viajei para sete países do Oriente Médio.

ÉPOCA – A redução do IPI foi uma medida que funcionou para reaquecer a economia. Começou nos carros, foi para os produtos da linha branca e outros setores. Mas ela é uma exceção. Nos últimos 20 anos, a carga tributária só subiu. Olhando para os próximos 20 anos, o senhor vê o brasileiro pagando menos impostos?
Lula – Defendo menos impostos se isso não contribuir apenas para aumentar o lucro empresarial, mas também para a geração de empregos e a distribuição de renda. Em todos os países mais pobres, a carga tributária é muito baixa. Em todos os países com a melhor qualidade de vida, é muito alta. Você pode pegar da Finlândia até a Inglaterra. Em alguns lugares, você taxa menos a produção e taxa muito a pessoa física, o rendimento. Não existe outro jeito de fazer justiça social. Como você acha que a Suécia construiu justiça social, a Noruega, a França? Com uma forte capacidade de arrecadação do Estado. Lógico que, se o Estado criar as condições para desonerar o investimento do setor produtivo e aumentar o pagamento da renda das pessoas, você pode substituir. Mas o debate sobre Estado mínimo é uma bobagem. Ou você tem um Estado que funciona ou aquele que não funciona. Como você quer melhorar o atendimento no balcão se não tiver gente para atender no balcão? O Estado tem de ter um conjunto de pessoas capacitadas. O Estado só vai atender a população se for uma máquina azeitada, funcionando bem, com o pessoal bem remunerado. Não podemos ser hipócritas.

ÉPOCA – Com o envelhecimento da população, a questão do deficit da Previdência se torna ainda mais urgente. O que o senhor acha que deveríamos fazer?
Lula – Sou defensor da ideia de que, a cada 30 anos, deveríamos fazer uma reforma da Previdência. Uma geração tem de preparar a aposentadoria da geração seguinte. Antigamente, a gente se aposentava com 35 anos de trabalho e vivia até os 60, 62. Na minha geração, poucas pessoas conheciam os avós. Hoje, as pessoas estão com uma média de 73. Daqui a pouco, chegarão a 80, 90. As pessoas não podem ficar aposentadas mais tempo do que contribuíram. Precisamos fazer uma reforma da Previdência pensando em daqui a 30 anos. Acho que é possível. Temos de fazer um trabalho de convencimento, mas é possível chegar lá. Agora, é bom esclarecer que a Previdência não tem deficit. Há um empate entre aquilo que os trabalhadores pagam e aquilo que outros trabalhadores recebem. O que acontece é outra coisa. O Tesouro joga nas costas da Previdência os gastos com a Seguridade Social. Mas as receitas da Previdência cobrem os gastos com suas pensões. Isso precisa ficar claro.

ÉPOCA – Quando olha para sua passagem pela Presidência, qual é sua visão?
Lula – O ser humano não é levado em conta pela quantidade de dinheiro que tem. É levado em conta pelo que faz. Pelo que é. O Brasil teve muitas décadas de subserviência. Isso acabou. Outro dia eu disse: “Feliz do país que terá em 2010 uma disputa entre Serra e Dilma”. Você vai ter duas pessoas que têm divergências, concepções diferentes, mas duas pessoas que têm passado político. Foi importante eu e o Fernando Henrique Cardoso disputarmos, sabe? Foi uma melhora no quadro espetacular. E isso foi uma conquista do Brasil, foi uma conquista de todo mundo. Eu acho que quem vier depois de mim vai pegar o país mais elaborado, mais estruturado. Aí, fica mais fácil. E quero que quem vier depois de mim, o outro ou a outra, deixe o país muito mais preparado para 2022, que são 200 anos de independência.

Da Época