Mauro Santayana: A sombra dos anos 30
Por Mauro Santayana, no Jornal do Brasil
O século passado teve como eixo a década de 30. Ela se iniciou com a crise econômica mundial, que estas últimas horas de angústia nos mercados financeiros fazem lembrar, e se fechou com a conseqüência prevista pelos céticos: o início da Segunda Guerra Mundial. Foram os anos do grande confronto entre a esquerda e a direita, com contradições, idas e vindas, ilusões e tragédias, que os livros registram. Em suma, sinistras lições aos homens, que devem ser meditadas, para que o mundo não volte a ser encharcado de sangue.
Muitas são as teorias que tentam explicar aquela amostra do apocalipse. A mais conhecida é a de que, derrotada e humilhada em 1918, a Alemanha buscava a revanche com Hitler. Para isso, seu líder, encarnando o velho orgulho prussiano, obtivera o apoio da Nação a fim de vingar-se de seus inimigos e expandir o espaço vital, que consideravam necessário à plena realização de seu destino de povo de senhores.
Naqueles anos e meses da República de Weimar, mais do que em outras épocas históricas, as distorções da linguagem serviram para confundir e desorientar os homens. A esquerda buscava construir, na antiga Rússia, uma sociedade socialista. Hitler começou filiando-se a um pequeno partido de trabalhadores, que ele dominaria e o ampliaria no Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Os comunistas e socialistas alemães menosprezaram aquele grupo de bêbados, que se vestiam militarmente e brandiam slogans primários. A Alemanha não é a Itália, declarou, confiante, aos que temiam o totalitarismo no país, Ernst Thälmann, o lendário dirigente do Partido Comunista Alemão, depois de ter sido derrotado nas eleições presidenciais de 1932, por Hindemburg, e da ascensão de Hitler à chefia do governo, à frente da coligação de direita, graças ao apoio dos católicos. Em março de 33, poucas semanas depois, Thälmann seria metido no campo de concentração de Buchenwald, onde foi executado em agosto de 1944.
Os democratas e as organizações de esquerda não souberam unir-se, ali, para a resistência – o que reclamava a construção de uma idéia forte de centro político, a fim de impedir, a tempo, a ascensão dos nazistas. Não souberam unir-se ali, nem em outras nações. O caso mais dramático, fora da Alemanha, foi o da Espanha. Como anotou Salvador de Madariaga, de resto um homem rigorosamente de centro, o malogro da República Espanhola foi o malogro do centro político. Ao crescer o radicalismo tanto na direita quanto na esquerda, não houve espaço para a moderação do centro. Mais poderosa – com a ajuda dos fascistas italianos e dos nazistas, e a total adesão da hierarquia da Igreja Católica – a direita esmagou a República, depois de quase três anos de conflito. De nada valeu a pouca ajuda soviética que conseguia chegar ao país – nem a presença simbólica dos corajosos intelectuais que formaram as Brigadas Internacionais. Madariaga tinha razão: se tivesse havido o entendimento entre os partidos de esquerda, que mal se acomodavam na Frente Popular, e, depois, com as forças de centro, não haveria clima para a insurreição dos generais Sanjurjo, Mola, Queipo de Llano e Francisco Franco. Madariaga foi rigorosamente de centro no eclodir do conflito: como embaixador da República, não tomou partido na guerra, mas se tornou vigoroso opositor da ditadura franquista, e só voltou à Espanha em 1976, depois da morte do ditador.
Menosprezar a direita tem sido, mais do que erro de percepção política, ilusão criminosa. Na mesma Espanha, quando o governo dispunha de informes seguros da conspiração em marcha, o então chefe do governo, Casares Quiroga, recebeu a advertência do serviço secreto republicano com um muxoxo: se eles se levantam, eu vou me deitar. Em 1964 – recordam-se? – as esquerdas, também divididas em nosso país, percorreram as mesmas sendas da ilusão. Não só é vezo da esquerda subestimar as forças adversárias, mas também assusta-las, com os espantalhos da insurreição. Em seu favor milita realmente a ilusão. As Ligas Camponesas, armadas de fé e de espingardas cartucheiras, cresciam seu ilusório poder, diante da classe média em pânico. O mito de Che Guevara empolgava os jovens, da mesma maneira que a invencibilidade cubana, na Bahia dos Porcos, atiçava os ânimos bélicos de muitos de nós, os que vivemos aquele tempo.
Esse excurso ao passado não é por acaso. Estamos em tempo muito parecido aos anos 30. Nos Estados Unidos, um governo que tenta chegar ao centro, o de Obama, é acossado pelo Tea Party e pelos velhos texanos, que sempre estiveram na linha de frente do obscurantismo. Basta recordar que foi em Dallas que a direita eliminou Kennedy, ainda que o jovem presidente, como a história nos mostra, não fosse exatamente um liberal de esquerda. Do Texas vieram Bush pai e Bush filho, e os republicanos agora ameaçam buscar em Rick Perry, seu atual governador, e raivoso direitista, o oponente a Obama nas eleições vindouras.
A Europa caminha rapidamente para a direita, e os governantes buscam justificar a repressão policial como necessária, diante das crescentes manifestações populares contra o desemprego, a redução das pensões, a falta de moradias e de perspectivas para o povo – também comuns nos anos 30. A Espanha recebeu ontem a visita do papa Bento 16, cuja simpatia pela direita é notória. Os espanhóis foram às ruas, protestar contra os gastos governamentais com a recepção ao pontífice, em momento de gravíssima crise econômica interna. Ainda que o papa se tenha declarado contra a lógica do “lucro acima do direito das pessoas”, seus atos não confirmam a retórica. A posição do papa, diante das dificuldades da Península, foi bem exposta em visita anterior a Santiago de Compostela, quando Ratzinger expressou preocupação contra a crescente laicidade dos espanhóis e o seu anticlericalismo, “que lembra os anos 30”, e pediu “nova evangelização” na península. A “evangelização” franquista dos anos 30, apoiada na Opus Dei e no garrote vil, nós já conhecemos. Que outra “evangelização” pretende agora o papa, quando se queixa da liberdade de pensamento na Espanha atual?
A presidente Dilma Roussef atribuiu-se duas missões em seu governo: a de combater a corrupção e a de eliminar a miséria que ainda assola grande parte de nosso povo. E a direita nacional, ainda que com certa dissimulação, começa a articular-se. Isso vai exigir da esquerda, no diálogo com o centro, grande esforço, para a criação de força política de centro, organizada e articulada, firme em sua ação, a fim de dar o suporte da nação, para que possa enfrentar o vendaval internacional – com a crise econômica, o renascimento brutal do racismo na Europa e a reorganização dos nazistas e fascistas.
A Alemanha, contra o otimismo dos comunistas e socialistas, repetiu, em 30, com mais tragédias, o fascismo italiano. Por pouco, os integralistas não se apossaram do Brasil, nos anos 30. Sofremos o que sofremos sob a direita nacional, a partir de 1964. Essas lições dos anos 30 nos exigem acurada vigilância e a visão real do processo histórico. A direita está aí, firme, construindo sua vez e sua hora.