Mauro Santayana: Ainda há esperança
Por Mauro Santayana, em sua coluna no Jornal do Brasil
As duas tragédias desta semana, a de Tucson e a da Serra do Mar, trazem, em todo o seu horror, a centelha da esperança. Os fatos do Arizona, embora tenham custado muito menos vidas, conduziam presságios piores.
Os desastres naturais, ainda que se devam, em parte, à imprevidência dos homens e dos estados, não podem ser imputados à vontade desse ou daquele agente. A vida é uma concessão fugaz de razões imperscrutáveis que fizeram surgir tempo e espaço e, neles, essa fantástica aventura da energia convertida em matéria e dotada da consciência de si mesma. As tempestades, os vulcões, terremotos, ciclones – e prováveis impactos de asteroides – escapam de nosso controle. Diante deles, nossa impotência se converte em força e coragem, como nos revelam os belos atos de solidariedade destas horas de luto e pranto.
Nos Estados Unidos, embora de forma ainda tímida, começa a reunir-se a consciência da necessidade de convívio mais civilizado entre os interesses políticos e econômicos, que sempre se aproveitam dos piores sentimentos para impor-se à sociedade. Ali, a extrema-direita se move contra a assistência médica universal e os imigrantes pobres. O discurso de Obama, convocando a união, foi acolhido com respeito.
Mas o ódio que se construiu e se manifestou de forma quase absoluta, nos anos 30 e 40, está, mais uma vez, de volta, e ensandecido, como revelam os atos do Tea Party, de Sarah Palin, Karl Rove e Murdoch. Nos últimos 65 anos, depois que o Julgamento de Nuremberg espantou o mundo com a ideologia do Terceiro Reich, que juntava baderneiros aos grandes banqueiros, temos lutado, com algum êxito, contra a nova barbárie, mas não conseguimos dela nos livrar.
O ódio ao outro permanece, e sofremos em ver que, em alguns casos, as vítimas de ontem se transformam em cruéis perseguidores de hoje. Sim, pensamos na Palestina. Todos os homens teriam que visitar, pelo menos uma vez na vida, os campos de concentração que ainda restam de pé.
Mais do que isso: deveriam ser de leitura obrigatória os relatos dos sobreviventes desses espaços de ódio convertido em razões de estado. Um desses inquietantes depoimentos é o de Robert Antelme, La espèce humaine. A mais clamorosa de suas experiências foi descobrir, em um relâmpago da consciência, que os seus algozes pertenciam à mesma e única espécie humana.
“O reino do homem – diz Antelme – não cessa. Os SS não podem mudar nossa espécie. Eles mesmos são fechados na mesma espécie e na mesma história”. E em outro momento forte, Antelme, resistente francês – e não judeu – reduz o SS a um ponto minúsculo no sistema, “encerrado, ele também, dentro do arame farpado, condenado a nós, fechado dentro de seu próprio mito”.
O Brasil, representado pela decisão da chefe de Estado, se une na busca dos mortos e feridos nas encostas de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo. Todos os nossos recursos, humanos e materiais, serão empregados no Rio de Janeiro, de acordo com a decisão da presidente Dilma Rousseff. Essas providências, é certo, serão tomadas também nas áreas atingidas em outros estados, como os de São Paulo e Minas.
É mais fácil sepultar as vítimas dos desastres naturais do que as da bestialidade dos próprios homens. Os enviados para as câmaras de gás e os fornos crematórios dos lager nazistas – judeus, comunistas, eslavos, ciganos – continuam insepultos, ainda que convertidos em cinzas, como insepultos continuam os negros assassinados pela Ku-Klux-Kan, os líderes políticos como Gandhi e Allende, as vítimas de Tucson – e os brasileiros mortos em tempo que não se afasta de nossa memória dilacerada.
Apesar disso, não puderam assassinar a esperança. Enquanto formos capazes de remover os escombros, neles encontrar vidas, e chorar pelos estranhos, seremos também capazes de combater o ódio e as injustiças, para a salvação da nossa espécie.