Mexer na poupança?

Artigo de Artur Henrique publicado no Le Monde Diplomatique

Há pouco mais de dois meses, o governo federal anunciou a intenção de mudar as regras da caderneta de poupança para evitar a migração dos saldos monetários aplicados em renda fixa para a poupança. Seguiu-se uma grande confusão, em parte por essa preocupação não fazer sentido para a maioria das pessoas. Afinal, qual o problema em aumentar o fluxo de dinheiro para a poupança? Entretanto, a falta de clareza maior foi em razão da indigência argumentativa da oposição, que chegou a produzir comerciais de TV para acusar um suposto “confisco” sobre os mais pobres.

Acreditamos que o episódio recoloca no centro do debate a necessidade de aprofundar a reflexão de qual política econômica, fiscal e tributária, e qual sistema financeiro servem a um projeto de desenvolvimento sustentável que distribua renda, valorize o trabalho e inclua os milhares de brasileiros que estão à margem. O fato de o governo ter adiado o encaminhamento das mudanças na poupança nos abre a oportunidade de influir no debate e propor medidas mais estruturais, tendo claro que o problema da transferência de recursos para a caderneta de poupança deve se agravar, como veremos adiante.

A taxa de juros básicos da economia é uma decisão de governo e, embora mais lenta e tardiamente que julgamos necessário, ela vem caindo. Foi necessário que a crise batesse à porta e provocasse a desaceleração dos preços relativos, apontando uma perspectiva de inflação inferior à meta inflacionária estabelecida, para que a autoridade monetária, a quem compete essa decisão, adotasse a medida de redução contínua da taxa de juros, sem que isso comprometa o sistema de metas adotado pelo Brasil; cabe aqui o parêntese: esse sistema é severamente criticado pelos trabalhadores, por não estar conjugado a metas de crescimento econômico e de geração de empregos.

Com a queda da Selic, cai também a remuneração dos investimentos em renda fixa, atrelados à taxa básica de juros. Se os rendimentos pagos por essas aplicações, à medida que a Selic regride, ficarem abaixo do que paga a poupança, os investidores transferirão seu dinheiro para esta última, abandonando os fundos em busca de melhor retorno. Daí o governo querer taxar toda a conta de poupança que ultrapassar R$ 50 mil: para evitar que grandes especuladores embarquem nessa transferência.

Garantir as demais aplicações, além da poupança, é uma forma de financiar a dívida pública interna, sem a necessidade de emissão de moeda e risco de descontrole da inflação. Essa dívida que o governo herdou gira, hoje, em torno de 40% do PIB (Produto Interno Bruto). Para financiá-la, ou seja, para evitar a cobrança súbita e de uma única vez, ele coloca títulos da dívida – espécie de promissória – à disposição do mercado, atraindo especuladores que os compram porque sabem que, ao resgatá-los, receberão altíssimos lucros. São esses títulos que sustentam os fundos de investimento, que por sua vez dependem de uma alta taxa básica de juros para ser atrativos. Segundo estimativas de alguns economistas, os títulos da dívida pública favorecem menos que 0,5% das famílias brasileiras. E a alta taxa básica de juros, como todos sabem ou já sentiram, aumenta a dívida interna, inibe a atividade produtiva e o comércio e, em consequência, restringe a geração de empregos decentes.

Assim, sob a ótica puramente econômica, a medida pretendida para a poupança é perfeitamente explicável e compreensível. Entretanto é preciso avaliar se esse é o único instrumento que o governo dispõe para o controle de fluxos monetários e se, de fato, é eficiente. Mesmo que a proposta não avance, se não for adotado outro mecanismo ficará um vazio que pode criar um novo problema: se o rendimento da poupança se tornar grande referência no processo de queda da taxa Selic, isso pode significar que essa queda será interrompida para evitar que a taxa básica fique igual à remuneração bruta dessa aplicação popular.

Lembremos que a remuneração bruta da poupança é composta, atualmente, pelo lucro líquido de 6,17% ao ano, pela Taxa Referencial e mais o ganho representado pela isenção das taxas que recaem sobre outras aplicações disponíveis no mercado. Queremos que a Selic caia muito mais que isso, especialmente num momento de crise, quando a inflação nem de longe é argumento para mantê-la como está e, especialmente, quando a atividade produtiva precisa ser estimulada ao máximo.

Na opinião da CUT – Central Única dos Trabalhadores, o enfrentamento das questões estruturais da economia exige conflito. De forma muito clara e propositiva, apresentamos formalmente ao governo a necessidade de suspensão do superávit primário, ainda que apenas pelo tempo em que a crise persistir, direcionando esses recursos para a ampliação dos gastos com serviços sociais e investimentos produtivos. Hoje, segundo o Banco Central, o superávit alcançou R$ 33,4 bilhões, ou 3,6% do PIB. É muito dinheiro, que deveria estar garantindo empregos, salários e serviços públicos de qualidade. É preciso reconhecer o mérito no fato de a relação dívida/PIB estar caindo consideravelmente – entretanto, consegui-lo dentro das regras atuais está exigindo esforço demais.

Sabemos da complexidade do tema. Para adotar medidas mais estruturais, o governo precisará de uma ampla e imediata mobilização social apoiando-o, dado que é certa a reação brutal dos bancos, com ramificações internacionais e representantes de fortes interesses, que mobilizariam todas as suas forças no sentido contrário.

Podemos então pensar como construir esse caminho por meio de medidas progressivas. Por exemplo: em lugar de taxar poupanças acima de R$ 50 mil, o governo poderia equalizar seus rendimentos à média dos rendimentos do mercado e, ao mesmo tempo, tributar em forma de renda os rendimentos de outras formas de aplicação, assim como pensa em fazer com a poupança.

Em razão dos impactos da mudança, sua aplicação dar-se-ia de forma gradual, sendo que num primeiro momento a mudança recairia apenas como tributação dos rendimentos das demais aplicações, que deixaria de ser na fonte e passaria a ser na época da declaração do imposto, cuja alíquota a ser aplicada deve corresponder à faixa de renda do declarante. Num segundo momento, a mudança incidiria sobre o método de remuneração da poupança, no sentido de atrelar a sua rentabilidade à do mercado.

Com essas propostas, faríamos uma abordagem que, embora pontual, aponta na direção certa, rumo à maior taxação de quem ganha mais e ao alívio de quem ganha menos. Já seria um avanço. Mas é evidente que podemos e devemos ousar mais nessa direção. O atual governo, marcado pela capacidade de diálogo, tem condições de, num plano maior que a questão da poupança e dos fundos de investimento, propor uma ampla negociação nacional, com todos os atores sociais, de medidas que possibilitem o desenvolvimento econômico, social e ambiental do país, de forma sustentável.

Dentre outras propostas que apresentamos ao governo e à sociedade, destacamos o Imposto sobre Grandes Fortunas, a democratização do Conselho Monetário Nacional e uma nova estrutura tributária progressiva, exemplos de como se podem inverter os sinais que hoje norteiam a ação do Estado no sistema financeiro e sobre aqueles que dele desfrutam os dividendos diretos. Para nós, do movimento sindical e dos movimentos sociais, fica a tarefa de esclarecer, sensibilizar e mobilizar os trabalhadores para disputar essas e outras mudanças. Com isso, é possível avançar na construção de um projeto de sociedade mais humano e justo, a que essa crise nos desafia, impedindo reorganização do capital, que quer manter a enorme concentração de renda e exclusão de milhares de pessoas, como sempre foi.

Da CUT