Mundo|Uma nova identidade

África do Sul revê seu passado para reescrever sua história. Por Bernardo Kucinski.

Por Bernardo Kucinski

Estive dez dias na África do Sul e voltei impressionado com a profundidade das mudanças que lá ocorreram com o fim da segregação racial – o infame apartheid – em comparação com o pouco que mudou no Brasil com o fim da ditadura. Na África do Sul, toda a cultura de dominação branca foi substituída por uma nova cultura de celebração da liberdade e da igualdade racial. Os museus, os nomes das ruas, as instituições públicas, tudo está hoje voltado a esclarecer as gerações presentes sobre os crimes do apartheid e os horrores da escravidão que levou da África 8 milhões de negros e em cuja captura morreram outros 40 milhões.

Há um grande Museu do Apartheid, um Museu da Escravidão e o novo museu do Hector Peterson, estudante negro baleado pela polícia no protesto estudantil de Soweto de 1976. Esse levante, contra a imposição, pela minoria branca, da língua africâner no ensino básico, precipitou o fim do regime de segregação racial.

Ao largo da majestosa costa da Cidade do Cabo, a ilha em que Nelson Mandela passou a maior parte dos 27 anos em que esteve preso, Robben Island, é hoje um espaço igualmente dedicado às vítimas da repressão. Em dias de feriado nacional ou férias escolares é preciso reservar bilhetes do ferry com antecedência.

O Museu do Sexto Distrito, também na Cidade do Cabo, emociona o visitante ao retratar a expulsão de 60 mil moradores do centro histórico da cidade e a destruição completa de suas casas e suas ruas, quando as autoridades brancas decidiram abrir mais espaço para o cais do porto e para um centro financeiro “moderno.” A maioria era de ex-escravos, indianos, malaios e negros, trazidos à força da costa oriental da África e das ilhas do Oceano Índico pela Companhia Holandesa de Comércio, no século 17, para carregar os navios que circundavam o Cabo da Boa Esperança.

O museu retrata cada rua, cada família, cada barbearia, cada salão de música, tudo o que existia no bairro. Lembra pela forma, embora mais singelo, o Museu do Holocausto, em Jerusalém, que também dá nomes e faces às vítimas, em vez de apenas mitificar a tragédia com grandes números. Ali está a mais contundente demonstração do uso do espaço como instrumento de opressão. Toda a história da colonização da África do Sul, por holandeses e ingleses, é feita de deslocamentos forçados de povoados, confinamentos urbanos e restrições ao movimento das pessoas. E quem projetou a expulsão dos pobres do sexto distrito? O famoso Le Corbusier (1887-1965), tido como mestre de muitas gerações de arquitetos no mundo todo e conhecido no Brasil apenas pelos prédios bonitos que desenhou.

Elucidar a memória – Soweto, nos arredores de Johannesburgo, é outro resultado do deslocamento forçado de uma população urbana negra. Surgiu quando os negros foram expulsos de Sophiatown, uma das poucas áreas urbanas em que viviam com algum grau de conforto, que o regime do apartheid decidiu declarar nos anos 50 “zona de residência exclusiva branca”. Hoje, é um vasto conglomerado de bairros pobres e favelas, com 3,5 milhões de habitantes. Ali, a diminuta casa em que morou Nelson Mandela, no bairro de Orlando, virou lugar de peregrinação de famílias negras vindas de todo o país. A igreja do bispo Desmond Tutu, o sacerdote que deu apoio a Mandela, também, e até hoje preserva os vitrais perfurados pelas balas da polícia.

No alto de uma colina no coração de Johannesburgo, o Old Fort, usado durante décadas como prisão central, abriga o novo Tribunal Constitucional, a mais alta corte do país. E, para expor o grande contraste da passagem de um regime de opressão para um estado de direito, a maior parte da antiga prisão foi preservada e suas celas abertas à visitação. Por lá passaram Mahatma Gandhi, o primeiro a se rebelar contra a discriminação racial, e o próprio Mandela.

No Museu do Apartheid há uma exposição especial sobre Steve Biko, um dos mais importantes militantes negros, morto sob tortura pela pol