Nos embalos da máfia
Imponente prédio de estrutura de vidro, pé-direito duplo e mezanino, a Casa Mathilde destoa dos vizinhos na praça Antônio Prado, no centro paulistano. Seus 1.200 m2 vivem apinhados de engravatados do poder público. Era ali, segundo servidores, o “point” frequentado pela “intelligentzia dos reis do ISS”.
A tradicional doçaria portuguesa está a 70 passos, sem desviar dos andarilhos e moradores de rua que trafegam por lá, de uma das entradas do edifício Martinelli, onde funciona a Secretaria de Habitação, entre outras, e a duas quadras da sede da prefeitura e da Secretaria de Finanças, epicentro do escândalo.
Entre um “mocaccino” (R$ 8) e um “travesseiro de Sintra” (R$ 5), só há um assunto na boca de Mathilde: a máfia do ISS, grupo de auditores e fiscais que fraudava o recolhimento do Imposto sobre Serviços, segundo investigações da Controladoria- Geral do Município e do Ministério Público.
Em meio à trovoada de denúncias, a discrição anda pautando as conversinhas no café, mas funcionários se lembram muito bem de uma “loira bonitona, corpão”, que carregava um celular vestido com uma capa de oncinha.
Era Vanessa Alcântara, 27, a ex de Luís Alexandre Cardoso de Magalhães, 41, fiscal que, envolvido no esquema, aceitou o benefício da delação premiada.
Na doçaria, segundo servidores, a loira não costumava ser flagrada desfilando ao lado de Magalhães, mas, depois de deixar a Promotoria, na última segunda, ela ganhou os holofotes em todo o país. Na ocasião, ela vestia uma blusa estampada com imagens de tigres e, é claro, de oncinhas.
Sob a condição de anonimato, outros funcionários públicos municipais descreveram Magalhães como “garanhão” e “pityboy quarentão”.
Ele e os outros suspeitos de integrar a máfia do ISS circulavam por aquelas bandas da rua São Bento, conforme atestam funcionários, ostentando “ar de superioridade”, como se nada temessem.
O ex de Vanessa adora charutos -cubanos, bem entendido. Era cliente assíduo da Cigar & Book, loja discreta que, quase espremida entre prédios da Vila Nova Conceição, na zona sul, também vende vinhos e presentes.
Para entrar lá, é preciso tocar a campainha e aguardar o vendedor abrir a porta. A área reservada aos charutos fica no fundo, à esquerda.
Acondicionados em caixas de madeira com 25 unidades, os cubanos confeccionados pela Habanos S.A., da marca Cohiba, estão entre os favoritos do auditor. Preço? R$ 1.100.
Em um dos cartões-postais da gastronomia, o restaurante Figueira Rubaiyat, o casal gostava de se sentar no amplo salão principal, debaixo da centenária figueira.
O presunto ibérico pata negra Bellota era obrigatório na abertura dos banquetes, seguido pelo “queen beef”, prato preparado com carne da fazenda própria do restaurante. A entrada saía por R$ 109, e o principal, por R$ 248.
Para acompanhar, Charmes-Chambertin Grand Cru 10, vinho francês de R$ 833.
Outro funcionário lembra que o “sarado do Porsche” tomou ao menos uma vez o vinho magnum Vega Sicilia Unico. O “clássico dos clássicos” espanhóis sai pela “bagatela” de R$ 4.977, “dinheiro de pinga” para quem tem uma fortuna avaliada em R$ 18 milhões, segundo a controladoria.
“A gente não está aqui para pedir cartão de visita. Só de crédito ou de débito. Mas ele sempre pagava com dinheiro vivo”, conta o garçom.
O foco do desvio na arrecadação eram prédios residenciais e comerciais, com custo de construção superior a R$ 50 milhões, segundo as investigações. A Promotoria estima que as fraudes tenham causado prejuízo R$ 500 milhões em ISS não recolhido.
Lagosta e striptease
Os fiscais também costumavam ir, em Pinheiros, ao Bomboa, clube frequentado por garotas de programa que cobra R$ 230 a entrada.
O valor pode ser usado para consumir bebida ou comida ali, onde uma caixinha de água de coco sai por R$ 30.
O que eles apreciavam mesmo, porém, era o uísque Johnnie Walker Blue Label e o champanhe Dom Pérignon (cada garrafa custa R$ 2.100).
As meninas não sabem de coisa alguma, nunca viram nada e nem sequer usam o nome verdadeiro. “Fernanda” é o “nome de guerra” de uma morena de 1,75 m, lábios carnudos e vestido tão grudado ao corpo que parecia confundir-se com a sua pele.
Ela diz que os fiscais pagavam R$ 200 pelo “striptease”, que rolava ali mesmo, sobre a mesa. Tudo em “cash”.
Qualquer uma das cerca de 200 meninas que ali trabalham cobra R$ 30 por um simples selinho. Beijo de verdade? Sobe para R$ 50. Já o programa de 60 minutos oscila entre R$ 400 e R$ 700.
Com a namorada atual, a personal Nágila Coelho, 38, Magalhães escolhia lugares em um dos três pisos do restaurante cearense Coco Bambu, no Itaim.
“Já eu gostava de coisas mais sofisticadas”, alfineta Vanessa, a ex-companheira. “Como a Enoteca Fasano, em Campos [do Jordão].”
Magalhães e Nágila “esbanjavam”, segundo uma frequentadora da casa. Ela conta que eles pediam a chamada “rede do pescador”, um prato com lagosta, camarão, mexilhões, peixe e lula gratinados com arroz de açafrão, top do menu, por R$ 239,90.
Na hora de pegar o Porsche, avaliado em R$ 400 mil e hoje apreendido por determinação da Justiça, Magalhães incorporava o “mão de vaca”. Chegou a recusar-se a dar gorjeta, como lembra um manobrista que pede anonimato e recebe salário líquido inferior a R$ 1.000.
Da Folha de São Paulo