Nota de repúdio conjunta da Associação Henrich Plagge e da Associação dos Metalúrgicos Anistiados e Anistiandos do ABC (AMA-A ABC)

Neste preocupante momento político da vida nacional, nós, trabalhadores e trabalhadoras que vivemos o período da ditadura civil-militar no Brasil entre 1964-85, associados e associadas da Associação Heinrich Plagge, que reúne os ex-empregados da Volkswagen do Brasil vitimados por perseguições políticas entre 1964 e 1985, e os associados e associadas da AMA-A ABC, que reúne Anistiados e Anistiandos Metalúrgicos do ABC, vimos a público manifestar nossa preocupação com a incompreensível decisão judicial do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), reformando decisão de um juiz que reconheceu violações aos direitos humanos de Antonio Torini, torturado e preso durante a ditadura militar.

A decisão de primeira instância condenou a União a pagar indenização por danos morais à família do ferramenteiro Antonio Torini, ex-empregado da VW, que foi perseguido, torturado e punido em razão de sua insurgência contra o regime da ditadura militar de 1964 a 1985. A decisão de primeira instância, reformada pelo TRF3, resgatou a memória daqueles que resistiram ao arbítrio e, por isso, tiveram seus direitos humanos violados (Processo n. 5000493-21.2020.4.03.6126).

No voto vencedor, o Desembargador Johonsom Di Salvo, relator do caso no TRF-3, afirmou que Torini, militante de esquerda, fazia parte de movimentos que defendiam a ditadura do proletariado, com o objetivo de implantar um governo comunista no Brasil e subverter o regime vigente, que para a época as condutas de Antonio Torini eram subversivas e criminosas, que investigadas pelo DOPS, sujeitavam seus autores à prisão com incomunicabilidade e a denúncia pelo Ministério Público Militar, com julgamento pela Justiça Militar da União, e que Antonio Torini era infrator das leis vigentes.

O ferramenteiro Antonio Torini era empregado da Volkswagen do Brasil e em agosto de 1972 foi preso no interior da empresa e levado para o DOPS, onde ficou preso por 49 dias, sob tortura e depois foi condenado a dois anos de detenção pelo Superior Tribunal Militar, cuja pena foi cumprida e ao ser solto ficou “condenado” ao desemprego nas “listas sujas” que circulavam nas empresas, passando a viver de bicos, falecendo em agosto de 1998.

A decisão é preocupante, porque além de imputar ao falecido, com base nas leis da ditadura militar, a prática de crimes, rompe com a jurisprudência da própria Corte Regional, inclusive da Turma do Desembargador Relator, que assim vem enfrentando esse tema: “No caso em comento, o autor, por defender ações contra o regime militar, foi vigiado, perseguido e afastado de suas atividades laborais na empresa, para fins de apuração de falta grave (incitar a greve), o que não gerou mero constrangimento, mas sim efetivo abalo psíquico” (3ª Turma; AC 50030557320194036114; DJF3 Judicial 1 15/05/2020). “Com relação à constatação da responsabilidade do Estado, ressalto que tanto a doutrina quanto a jurisprudência pátria entendem que a responsabilidade civil do Estado é decorrente da existência de três caracteres interligados: ato ilícito praticado por seus agentes, dano ao particular e nexo de causalidade. Tal responsabilidade é objetiva, portanto, prescinde de dolo ou culpa. – Estão presentes, no presente caso, todos os requisitos caracterizadores da responsabilidade civil da ré pelos danos morais sofridos pelo autor, o qual foi sindicalista, tendo sido perseguido, preso e demitido exclusivamente por motivos políticos” (4a Turma; AC 50140725120194036100 – DJF3 Judicial 1 23/07/2020).

O direito à reparação por danos morais em razão de danos sofridos por perseguições políticas durante a ditadura militar encontra arrimo na Lei Federal n. 10.559/02, como reconhece de forma pacifica a jurisprudência dos tribunais, valendo lembrar que a recente Súmula 647 do Superior Tribunal de Justiça revela o entendimento consolidado sobre o cabimento da indenização pleiteada pela família de Antonio Torini, nos seguintes termos: “São imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar”.

Se são imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais decorrentes de atos de perseguição política, com violação de direitos fundamentais, ocorrida durante o regime militar, na forma assegurada pela Constituição Federal de 1988 (ADCT, art. 8º), parece mesmo equivocada e preocupante essa decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que, além de negar a reparação pelas perseguições por motivação política à vítima da ditadura militar, ainda imputa a ela a prática de crimes por oposição ao regime ditatorial da época.

Por isso, em 22/03/2021 o Procurador Regional da República de São Paulo, Dr. Marlon Alberto Weichert, recorreu da decisão do TRF3, que negou indenização à viúva de Antônio Torini, preso político pela ditadura militar.

No Recurso chama a atenção o Ministério Público Federal, para a necessidade de se cuidar para que, ainda que involuntariamente, o sistema de Justiça não seja fonte de revitimização. O Ministério Público Federal (MPF), diante do evidente interesse público e social do caso, requereu sua intervenção no processo como fiscal da lei. Ele “aponta no recurso que o acórdão convalidou atos de repressão política praticados contra Antonio Torini, sob o manto de ordenamento jurídico ditatorial. Entre outras coisas, o tribunal afirmou que “para a época, as condutas de Torini eram criminosas (subversivas), eram investigadas pelo Departamento de Ordem política e Social (Dops), sujeitavam seus autores a prisão com incomunicabilidade e a denúncia pelo Ministério Público Militar, com julgamento pela Justiça Militar da União” e que “a prisão, a incomunicabilidade, o julgamento e o banimento sofridos por Torini eram as consequências jurídicas de seus atos que tendiam à implantação de uma ditadura comunista no Brasil, em confronto com a opção política vigente”.

O Procurador Regional da República Dr. Marlon Alberto Wechert diz que “o acórdão incorreu em infeliz consideração ao insistir na qualificação de Torini como um criminoso”. Isso porque “sua ‘conduta’, sob as lentes de qualquer regime democrático, em hipótese alguma poderia ser assim denominada”.

O MPF resgata o contexto em que se deu a prisão de Torini, que era funcionário da Volkswagen, preso na sede do DOPS e condenado sob os auspícios de dois dos mais antidemocráticos e nefastos atos normativos da história brasileira (AI-5 e AI-12), que autorizavam as mais bárbaras violações aos direitos humanos dos opositores do regime ditatorial.

A acusação que pesava sobre Torini era de fazer parte de uma célula do Partido Comunista Brasileiro (PCB), conduta que em hipótese alguma seria considerada criminosa numa democracia.

Que não vire moda a defesa da ordem jurídica ditatorial em plena vigência da Constituição Democrática de 1988, que resgatou um regime minimamente democrático de direitos, com respeito às garantias fundamentais do povo brasileiro, especialmente neste momento de tragédia política que vive o Brasil. Ditadura nunca mais e que todos fiquem de alertas para que não se obscureça os caminhos do Estado Democrático de Direito, inaugurado no Brasil a partir de 1988.

Isto posto, repudiamos veementemente a incompreensível decisão judicial do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), reformando decisão de um juiz que reconheceu violações aos direitos humanos de Antonio Torini, torturado e preso durante a ditadura militar.

João Paulo de Oliveira – Presidente da Associação dos Metalúrgicos Anistiados e Anistiandos do ABC

Tarcísio Tadeu Garcia Pereira – Presidente da Associação Henrich Plagge