Novas ideias e pragmatismo no velho ABC

 

Rossana Lana / SMABC

O revestimento em madeira na parede da sala da presidência revela que o local passou por uma reforma. A memória foi, no entanto, preservada: dois grandes painéis repletos de fotografias resgatam cenas antigas, que marcaram a mobilização operária na região. A sala, que há 30 anos servia ao planejamento tático de confronto com as empresas, cede agora lugar a discussões pragmáticas, com conteúdo técnico e envolvidas em contextos globais. Ali são agora discutidas questões amplas, como a padronização internacional de normas e benefícios trabalhistas.

A sala do presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC serve ao passado e ao presente. A decoração está mais despojada, mas há um espaço nobre também para o retrato emoldurado de Luiz Inácio Lula da Silva com a faixa presidencial. Como não está numa repartição pública, o ocupante da sala não se sente na obrigação de atualizar o retrato do presidente da República. Manter a imagem de Lula com a faixa verde e amarela cruzando o peito serve para referendar o sucesso de quem ascendeu na carreira pública pregando a organização nos locais de trabalho.

Não se veem na sala símbolos típicos da esquerda, como bandeiras vermelhas ou o retrato de algum líder comunista, adornos frequentes em outras épocas. Há, sim, pendurado no teto, um balão com as cores e o emblema do Palmeiras, uma afronta, aliás, a Lula, cuja retrato está bem à frente do balão. Torcer para o Corinthians é a única coisa em Lula que não agrada ao atual presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.

Ao começar, aos 46 anos, seu segundo mandato na presidência do sindicato, Sérgio Nobre mantém o tom calmo e ponderado, o jeito educado e simples, características que o tornaram um dirigente sindical diferente da maior parte de seus antecessores. E antes que alguém note que não usa barba, ele faz questão de esclarecer que “não fica bem” barbudo. Para provar que já tentou deixar os pelos da face crescerem ele se apressa para pegar na gaveta uma foto sua na década de 80, quando já trabalhava na indústria automobilística.
Dizer que Lula foi a sua referência pode soar como algo óbvio num dirigente sindical da mesma facção. Mas, desde os tempos de aprendiz, toda a formação de Nobre de fato se baseou nas propostas que consagraram o ex-presidente da República no movimento sindical.

Nem todos os méritos, porém, são de Lula. Mais velho dos homens de uma família de oito irmãos, o paulistano Sérgio Nobre carrega a vocação desde o berço. Foi o pai, João Nobre, operário da indústria automobilística, quem o inspirou não apenas na escolha da profissão como nas ideias de organização no local de trabalho, uma especialização que ele consagraria, mais tarde, com o surgimento das comissões de fábrica.

Ainda criança, seu primeiro contato com uma fábrica foi na General Motors, em São Caetano do Sul (SP), onde o pai trabalhava. Já era um costume das empresas, à época, convidar as famílias dos empregados para conhecer o local de trabalho. “Eu me encantava com as máquinas e pensava: quero trabalhar com isso”, diz.

Não foi, porém, apenas o encanto infantil que o motivou a aproximar-se das linhas de montagem. Entre o fim dos anos 70 e início dos 80, quando Nobre tinha que começar a pensar numa profissão, era comum ver meninos de 14, 15 anos optarem por cursos profissionalizantes do Senai. “Era um caminho natural para se aprender uma profissão e receber um salário melhor”, diz.

Com o tempo, o aprendiz do Senai perdeu o status, mas manteve ganho salarial melhor do que muitos que concluem uma universidade. É por isso que, apesar de não ter recebido nenhum conselho do pai ou avô, o mais velho dos dois filhos de Sérgio Nobre decidiu seguir a mesma profissão. Aos 22 anos, casado e com uma filha de um ano e meio, Marcelo é operador de máquinas na Mercedes-Benz. Aproveitou um dos programas de vagas para parentes de funcionários, prática comum nas montadoras.

Marcelo teve motivos para querer ser metalúrgico. Assim que inicia a fase prática, mesmo que ainda não esteja contratado, o aprendiz tem direito à Participação nos Lucros (PLR), que, na base metalúrgica, ultimamente tem alcançado altas quantias. “Imagine o que representa para um garoto de 14 anos receber PLR de R$ 10 mil, R$ 12 mil”, diz Nobre.

Se dependesse do desejo do pai, Marcelo teria se aventurado em alguma das “profissões do futuro”, como se refere o presidente do sindicato. “Algo ligado a tecnologia”. Mas não teve jeito. Pelo menos até agora o jovem não demonstrou interesse em seguir a carreira de sindicalista. “Deve ser por influência da mãe”, arrisca, rindo ao lembrar como é difícil para uma família lidar com os horários de trabalho de um dirigente sindical.

Já Sérgio Nobre definiu os estudos seguindo o conselho do pai. Quando jovem, João saiu da região de Bauru, no interior de São Paulo, e conseguiu estudar mecânica em curso patrocinado por uma igreja. Trabalhou na GM, Mercedes e na Brastemp, onde aposentou-se na década de 80, em meio a crises econômicas e o início da efevescência do movimento sindical no ABC.

Na mesma época, Sérgio formou-se no Senai e foi admitido como aprendiz na Scania. Mas a crise da época dificultava a efetivação. “Naquele tempo só se cortavam empregos”, lembra. Seu primeiro contato com o sindicato surgiu no dia em que assistiu a uma assembleia comandada por Lula, que havia deixado o sindicalismo para se dedicar à criação do Partido dos Trabalhadores (PT).

Foi durante uma assembleia na porta da Scania que Nobre ouviu Lula dizer que a jornada do brasileiro extrapolava a de outros trabalhadores do mundo, porque começava muito cedo, quando ele pegava a primeira condução para chegar até a fábrica. “Achei que fazia sentido ele questionar o destino da riqueza que gerávamos e o retorno disso para a sociedade”, destaca.

Lula dizia coisas parecidas com as que Nobre ouvia em casa. Mesmo não sendo um ativista, João defendia que todo cidadão deveria se interessar por uma organização, fosse um sindicato ou um partido político. Tanto Lula, nas portas de fábrica, quanto João, em casa, sustentavam que o destino da riqueza gerada nas linhas de montagem só poderia ser discutido pelos trabalhadores se eles se organizassem. João tinha dois ídolos: Getúlio Vargas e Lula. Morreu, em 1994, sem ver o segundo ganhar a eleição para presidente da República.

Como trabalhava durante o dia e estudava à noite Nobre dedicava a folga do fim de semana para participar de debates sobre temas novos para ele, como desenvolvimento econômico, realizados nos núcleos de base. “Uma atividade que o PT não deveria ter interrompido”, diz.

A habilidade de negociador surgiu logo no começo da carreira. Depois de deixar a Scania, onde não conseguiu ser efetivado, ele conseguiu emprego na área de desenvolvimento de caminhões na Mercedes-Benz, em 1986. Era o começo do Plano Cruzado, que ajudou a aquecer a economia. Na época começavam a nascer no país as representações no local de trabalho, as chamadas comissões de fábrica. A da Mercedes foi conquistada numa greve. A empresa aceitou a formação da comissão em troca do retorno ao trabalho.

No ABC, essas comissões se transformaram na fonte de formação de dirigentes sindicais. No início, Nobre resistiu. Tinha planos de estudar – talvez engenharia – e tentava explicar aos colegas que seu interesse se limitava a participar das assembleias e eventos como as comemorações do Dia do Trabalho.

Mas, por fim, cedeu. Começava ali uma longa atividade com as representações nas fábricas. Passou 15 anos na comissão da Mercedes. “Havia muito conflito. Era uma relação selvagem, porque as empresas resistiam à ideia”, destaca. “Lula sempre dizia que se havíamos chegado nas portas de fábrica o passo seguinte era a organização dentro delas”, lembra. Depois de anos de “muito conflito e pouco diálogo”, as representações ganharam influência. “Tudo o que se decide numa fábrica hoje passa pela comissão”, diz.

Nobre dificilmente escapará da análise que muitos fazem de que tendem a ser brandas as relações entre a direção do sindicato e um governo comandado pelo partido que nasceu naquela mesma base. Ele também poderá ser criticado por apoiar, de alguma forma, bandeiras erguidas pelas empresas. Recentemente os metalúrgicos do ABC fizeram greve de um dia pedindo apoio do governo para evitar que a concorrência do produto estrangeiro provoque esvaziamento do parque industrial brasileiro.

O dirigente demonstra em sua fala que a aproximação dos operários dos interesses da indústria também revela um amadurecimento nas relações do trabalho. “Como existe um incremento de tecnologia nos automóveis, a tendência é que a as empresas usem a lata e o parafuso feitos no Brasil e importem o resto de fora. Se continuar dessa forma, daqui a dez anos a indústria de autopeças vai desaparecer”, destaca. Pesa também em favor do incremento das importações, segundo sua avaliação, o fato de a indústria não ter ainda se refeito da crise internacional. Isso incentiva os países desenvolvidos a exportar para mercados em ascensão como o brasileiro.

O momento seria, portanto, muito mais favorável à negociação com as empresas por objetivos comuns do que ao enfrentamento. Nobre, aliás, se formou em relações internacionais, curso universitário que ele fez quando já estava na diretoria do sindicato. Pensou que a especialização lhe seria útil para lidar com empresas que tomam decisões fora do Brasil.

E por acreditar que o movimento sindical precisa acompanhar a globalização, ele está agora estreitando contatos com as representações de metalúrgicos de outros países, como a China.

Não tem sido fácil organizar, por exemplo, uma mobilização pelo que ele considera ser a próxima bandeira do movimento sindical: a padronização internacional das normas trabalhistas. Segundo ele, essa seria uma forma de, por exemplo, estabelecer pisos salariais em dólares e jornadas iguais em todos os países.

Por meio da padronização, afirma, poderia se evitar o deslocamento da produção com o único objetivo de buscar custos trabalhistas mais baixos. “Nenhum trabalhador quer tirar o emprego do outro”, diz.

Mas muitas empresas, que escolheram produzir veículos em Estados onde não havia esse tipo de atividade, estão, no entanto, fechando acordos trabalhistas melhores que o sindicato do ABC. Há poucos dias, nas negociações da campanha salarial, a Renault acertou com os metalúrgicos do Paraná bônus acima do que foi fixado no ABC. Em relação a isso, Nobre afirma que, como os salários do ABC ainda são mais altos que no restante do país, embora o carro tenha um só preço em todo o país, é justo que os trabalhadores de outras regiões consigam acordos para reduzir a diferença.

E por que os metalúrgicos sempre tiveram mais força que a maioria das categorias? Na análise de Nobre, a vantagem começa por se tratar de uma classe que se formou no processo de industrialização do país. “Além disso, para lutar e obter consciência política é preciso ser bem informado. Com salários melhores, o metalúrgico é um operário que lê jornal, se informa”, diz.

Há outras facilidades. A formação profissional lhe permite passar muitos anos dentro de uma única empresa. “Ao contrário do trabalhador da construção civil, que se separa dos colegas ao fim da obra”, completa. Um protesto de metalúrgicos também conta com apoio da comunidade, “que os veem como lutadores quando conseguem parar a produção de um empresário, que tem dinheiro”. “Já um professor em greve só dá prejuízo para o filho do pobre que fica sem aula”, afirma.

Talvez por isso, um sindicalista metalúrgico nem precise da fama de Lula para ser abordado na rua. Nobre, que gosta de ir à feira, principalmente para pesquisar preços, encontra sempre algum trabalhador que lhe faz perguntas básicas, como seguro-desemprego e Previdência. “Sabe como é, eu nem sei onde fica o meu sindicato”, lhe explicam.

Os trabalhadores que se preparam para ir na assembleia que tratará da campanha salarial dos metalúrgicos do ABC na quarta-feira não enfrentarão a mesma dificuldade. O endereço é conhecido há muitos anos: o auditório do sindicato, que também foi reformado. O piso é novo e o som ganhou potência. O espaço, onde nas reuniões do passado só se conseguia avistar o pôr do sol entre operários espremidos, ficou mais amplo e mais claro. Os tempos são outros. Épocas sombrias cedem o lugar, agora, a discussões bem mais transparentes.

Do Valor Econômico