O novo ABC
Há 30 anos ex-dirigente sindical, hoje ex-presidente da República, Lula retorna à região que tem no mundo do trabalho - não só nas fábricas, mas nas ruas e nos movimentos - as raízes de seu desenvolvimento
Há 11 anos trabalhadores arrendaram fábrica e fizeram da Uniforja a mais bem sucedida do país. Foto: Raquel Camargo / SMABC
Cena 1: durante a greve dos metalúrgicos do ABC, em 1980, um ministro (Camilo Penna) diz que o movimento está infiltrado por estrangeiros, para aumentar os custos de produção. Outro (Murilo Macedo) vê a presença de comunistas. Líderes são presos, sindicatos sofrem intervenção. Empresários reclamam que o sindicalismo “selvagem” afugenta investimentos.
Cena 2: três companhias aeronáuticas – dos Estados Unidos, França e Suécia – disputam um espaço para instalar-se em São Bernardo; o prefeito, Luiz Marinho, é um ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos. A investida está relacionada à escolha, pelo governo brasileiro, de uma nova aeronave para a Força Aérea.
Entre um episódio e outro, passaram-se 30 anos. O principal líder sindical da região participa da formação de um partido, é deputado constituinte, disputa o governo estadual uma vez e a Presidência da República cinco vezes. Vence duas e, a partir de 1º de janeiro, ao deixar a residência no Palácio da Alvorada para se fixar em seu apartamento em São Bernardo, reencontra uma região em plena transformação. Com a vocação industrial preservada, mas com um forte setor de serviços que emprega 50% da mão de obra e espaço para experiências de economia solidária.
Precavido após anos de crise, entre as décadas de 1980 e 1990, o ABC – constituído de sete cidades e 2,5 milhões de habitantes – se articula de forma conjunta. O Consórcio Intermunicipal, que reúne as administrações das sete cidades, discute um plano estratégico para os próximos dez anos.
No final de novembro, a Prefeitura de São Bernardo também apresentou propostas para discutir a cidade até 2021. No mesmo período, foi lançado o Fórum Mauá 2025. A cidade é a 11ª do estado em número de habitantes e a 10ª mais pobre. Em 1954, ano da emancipação, tinha 10 mil habitantes. Hoje, 400 mil. “Faltou planejamento, e isso faz diferença. Planejar significa que a população entenda essa realidade para buscar soluções”, diz o prefeito de Mauá, Oswaldo Dias.
Ciente das dificuldades, Dias vê um amadurecimento do ABC, com a consolidação da visão regional, além de avanços políticos e econômicos. “Em 1980, vivíamos ainda sob uma ditadura. Trinta anos depois, vivemos em plena democracia. Do ponto de vista da economia, na década de 1990 se falava muito do Custo Brasil e do Custo ABC. Mas o ABC resistiu. São mudanças sedimentadas.”
Da fábrica ao gabinete
Muitos líderes políticos no ABC surgiram do movimento sindical. O PT elegeu em Diadema o seu primeiro prefeito, o ferramenteiro Gilson Menezes, em 1982. “Nós não tínhamos nenhuma pretensão política”, lembra o atual vice-prefeito, hoje no PSC. “Com os movimentos, o surgimento do PT, tivemos de assumir o compromisso de sair candidatos para iniciar a vida política do partido. Gilson liderou a greve considerada marco das transformações do sindicalismo, em maio de 1978, na Scania. “Já fui perseguido em fábrica, comi feijão azedo, marmita fria… Disputar a prefeitura seria mais um enfrentamento. Valeu a pena, porque não tinha a cultura de as pessoas se entregarem a um processo mais articulado. O povo queria participar tanto que me dava dedo em riste.”
Hoje, ele vê a região mais estruturada e com mais recursos, principalmente após a reforma tributária ocorrida com a Constituição de 1988. “As condições dos municípios melhoraram. Em 1983, nosso orçamento era de US$ 30 milhões. Com a reforma, a receita foi para US$ 75 milhões. Hoje, o orçamento anual é de pelo menos U$ 300 milhões. O governo Lula foi muito municipalista”, diz.
Mesmo sendo berço do PT e de Lula, o ABC está longe de ser unanimidade em relação a seu político mais conhecido. No segundo turno das eleições, Dilma Rousseff ganhou em Diadema, São Bernardo, Mauá e Rio Grande da Serra e perdeu em Santo André, São Caetano e Ribeirão Pires. O reduto operário concentra também uma classe média emergente e de perfil mais conservador. Na soma dos municípios, Dilma recebeu 769 mil votos (53,2%) e Serra, 678 mil (46,8%). Uma diferença de seis pontos percentuais, metade da nacional.
A nova classe média concentra quase 80% das famílias e a região é o terceiro maior polo consumidor do Brasil. O presidente da associação local de construtores, Milton Bigucci, diz que o ABC trocou as casas pelos apartamentos em condomínios fechados. “Não se constrói mais casa térrea ou sobrado. Busca-se a segurança total”, afirma. Além da questão da segurança, a falta de espaço leva à verticalização, como em São Paulo. O poder aquisitivo também aumentou. “O apartamento mais vendido é o de três dormitórios”, conta Bigucci. Segundo ele, o custo por metro quadrado está, em média, 10% menor que na capital, diferença que já foi superior a 30%.
Recuperação
A indústria automobilística instalada ali a partir dos anos 1950 explica em parte a força econômica da região, que concentrava mais de 180 mil metalúrgicos no início dos anos 1980. A base do principal sindicato da categoria, que reúne hoje quatro dos sete municípios do ABC, entrou em 1990 com mais de 120 mil trabalhadores e saiu com 80 mil. Após uma trajetória de recuperação iniciada em 2004, chega-se agora ao maior número (103,5 mil) desde 1995.
A crise, iniciada ainda nos anos 1980 e tornada mais aguda na década seguinte, acendeu o sinal de alerta e levou à formação do Consórcio Intermunicipal Grande ABC. “Quando o Celso Daniel criou o consórcio, passávamos pelo nosso pior momento econômico”, afirma Clóvis Volpi, atual presidente e prefeito de Ribeirão Pires, referindo-se ao ex-prefeito de Santo André, morto em 2002. “Chegávamos a quase 20% de desemprego, havia desestabilização da indústria, o PIB embicou para baixo. Ali começaram as grandes discussões.”
Hoje, a região vive situação privilegiada, segundo Volpi. Pelos dados do IBGE divulgados em dezembro, cinco municípios do ABC (pela ordem, São Bernardo, Santo André, São Caetano, Diadema e Mauá) estavam, em 2008, entre as 100 cidades brasileiras com maior participação no PIB nacional. Em agosto, Volpi e Mário Reali, vice-presidente do consórcio e prefeito de Diadema, abriram o processo de elaboração do Planejamento Regional Estratégico (PRE) para os próximos dez anos. “É o nosso plano de governo”, define Volpi, que cita como prioridades o combate às enchentes e a integração do transporte público.
Para o atual presidente, ainda é preciso amadurecer um “pensamento regional” entre os prefeitos, abrir mão de diferenças políticas. “O prefeito deve ter a sensibilidade de pensar regionalmente. Temos formação política heterogênea”, observa. O PT está à frente de três administrações (Diadema, Mauá e São Bernardo), o PTB de duas (Santo André e São Caetano), o PV, de uma (Ribeirão Pires) e o PSDB, de outra (Rio Grande da Serra). O próximo presidente do consórcio deve ser Reali, a partir deste mês.
Cinturão
“O ABC era um distrito, transformou-se em um único município, assistiu a vários movimentos de antecipação para chegar às sete cidades e descobrir que é um ser só”, diz o jornalista e historiador Ademir Médici, com seus 60 anos vividos na região. Ele identifica no início dos anos 1980 uma transformação de princípios e de mentalidade, com os vários movimentos sociais se organizando, inclusive no empresariado.
Do ponto de vista econômico, Ademir lembra que até nos anos 1970 o ABC possuía um “cinturão verde”, fornecedor de frutas, verduras e ovos para São Paulo e Santos. “Esse cinturão não existe mais, abriu espaço para novos bairros de uma população que foi migrante, primeiro do interior de São Paulo e posteriormente do Nordeste.”
O professor Luiz Roberto Alves, diretor da cátedra de Gestão de Cidades na Universidade Metodista, em São Bernardo, considera a cultura do trabalho um ícone do ABC, na passagem, usando termo do educador Paulo Freire, do imigrante “ingênuo” para a formação de uma consciência crítica, a partir dos anos 1950. Assim, seria “o lugar onde o trabalhador se encontrou mais cedo com o mundo”, devido à grande presença de multinacionais. “Uma moderníssima cultura do trabalho sedimentou as conquistas, por meio de fóruns, conselhos, consórcios, com novos atores nessa relação tripartite de governança”, afirma.
“As culturas do trabalho foram a ponta de lança do desenvolvimento. A região deve muito a elas”, diz Luiz Roberto, compreendendo como tais culturas não só o chamado chão de fábrica, mas as ruas, os movimentos reivindicatórios e as manifestações de solidariedade. As greves do final dos anos 1970 e início dos 1980 seriam o “parto da democratização” – mas o traço inconformista da região antecede essa época. “Estou aqui desde 1967, e esses lugares chamados de exclusão já não eram silenciosos. Se o enfrentamento (dos anos 70-80) não ocorresse, estaríamos despreparados em 1990”, avalia. Ele vê os grupos A e B diminuindo na universidade e os grupos C e D crescendo. “Eles (trabalhadores) formaram seus filhos. Agora, é o momento de gestão do bem comum.”
Amigos e militantes prepararam uma recepção para a “volta” de Lula ao ABC. Com tempo livre e fã de futebol, ele poderá assistir a um campeonato paulista que pela primeira vez reunirá na elite os “grandes” da região: São Bernardo, São Caetano e Santo André. Ainda em janeiro, o São Bernardo receberá o Corinthians. Lula poderá ver o seu time de coração e matar a saudade do cenário que o projetou para o mundo, o estádio de Vila Euclides, hoje denominado 1º de Maio. Ele já avisou a pessoas próximas que quer assistir ao jogo da arquibancada.
Veja mais na edição 55 da Revista do Brasil
Da Revista do Brasil (Vitor Nuzzi e Cida de Oliveira)