Opinião: Até tu, Gil?

“A recusa à ideologia machista, que implica necessariamente a recriação da linguagem, faz parte do sonho possível em favor da mudança do mundo”
Paulo Freire

Por Letícia Massula

Dessa vez foi na entrega do prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Digo dessa porque não foi a primeira vez, nem será, por enquanto, a última… Todas as pessoas que fizeram o uso da palavra usaram o plural no masculino, até o ministro da Cultura Gilberto Gil. Foram tantos “boa noite a todos”, “solicitamos a todos que desliguem os celulares”, “agradecemos a presença de todos”, que em certo momento tive vontade de sair, já que, como “toda”, eu era nada ali.

Não estou aqui fazendo uma crítica pessoal ao Ministro Gilberto Gil, tampouco o acusando de machista. Não seria justa tal crítica a quem compôs, entre outras canções, “Super Homem”, verdadeiro hino ao feminino. O que quero demonstrar é que o modelo cultural patriarcal em que vivemos está tão arraigado que até alguém como Gil, que ocupa justamente a pasta da Cultura, acaba incorporando padrões culturais que excluem as mulheres, vale dizer, metade da população. Se, como disse Caetano, “minha pátria é minha língua”, quero uma pátria/mátria que não me exclua, começando pela linguagem, importante instrumento de libertação, mas que também pode ser utilizado como ferramenta de opressão.

E em opressão, nós, mulheres, somos escoladas. Em 1997, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) criou um índice pra medir as diferenças por gênero. Quando pela primeira vez os dados sobre as mulheres foram analisados, o PNUD sustentou que “nenhuma sociedade trata suas mulheres tão bem quanto seus homens”.

A linguagem tem tudo a ver com esse dado, na medida em que invisibiliza cotidianamente as mulheres na sociedade e na história. Mulheres são nada se nunca estão incluídas na linguagem. Daí para exclusão do poder, da vida pública, do mercado de trabalho, é um pulo. Segundo Vera Vieira, coordenadora executiva da Rede Mulher de Educação, quando se diz a salvação do planeta está nas mãos dos homens, ao invés de a salvação do planeta está nas mãos da humanidade, reflete-se a posição que o homem vem ocupando na história, reforçando o papel hierárquico e as relações de poder e dominação masculina na sociedade.

O educador Paulo Freire, em sua obra a “Pedagogia da Esperança – um reencontro com a Pedagogia do oprimido”, faz um mea culpa e reconhece em sua obra o traço machista arraigado em nossa cultura. Diz ele: “Em certo momento de minhas tentativas, puramente ideológicas, de justificar a mim mesmo a linguagem machista que usava, percebi a mentira ou a ocultação da verdade que havia na afirmação: ‘quando falo homem, a mulher está incluída’. E por que os homens não se acham incluídos quando dizemos: ‘As mulheres estão decididas a mudar o mundo’?”

Algumas iniciativas vêm sendo apresentadas sobre o tema. O projeto de lei 4.610/2001, de autoria da deputada Iara Bernardi (PT-SP), aprovado no plenário do Senado Federal, prevê a utilização da linguagem inclusiva na legislação e em documentos oficiais. Irônico é que parta justamente da Câmara dos Deputados, que, em que pese ser composta também por 44 deputadas, mantém em seu nome a menção apenas aos deputados. Poderia, a exemplo do Senado, se chamar Câmara Federal, contemplando mulheres e homens.

Acabar com a discriminação do feminino significa construir bases sólidas de igualdade que sejam vivenciadas por futuras gerações de meninas e meninos – a materialização do desejo de todas e todos por uma humanidade justa, igualitária e inclusiva. Essa construção deve começar pela desconstrução da linguagemta, buscando uma alternativa à cultura patriarcal. Uma tarefa para todas as pessoas!

* Letícia Massula é advogada, Coordenadora do Projeto Promotoras Legais Populares em São José dos Campos e Brasília e fundadora d