País avança no combate ao trabalho escravo
O alojamento era de tábuas. Banheiro não existia e a única opção para banho era o riacho, onde as roupas também eram lavadas. O mato substituía o vaso sanitário. As condições do local, onde viveria pelos próximos oito meses, eram muito piores do que a casa onde morava. Mas Carlito da Silva, na época com 17 anos, não se importou. Ele precisava do emprego e se adaptou à nova realidade e a uma jornada superior a dez horas diárias.
Carlito, hoje com 26 anos, faz parte de uma lista do governo brasileiro de 46.073 pessoas resgatadas, entre 1995 e meados do ano passado, em condições de trabalho análogas às de escravo. Ao contrário da maioria, ele conseguiu romper esse ciclo, fazer um curso técnico e hoje é eletricista de uma empresa de Cuiabá.
Saudade daquele tempo? “Não, de forma alguma”, diz. Ainda assim, o trabalhador afirma que precisa ser justo com o gato – intermediador que o contratou para trabalhar na fazenda – porque ele era uma pessoa boa. “Não posso falar mal dele porque minha situação era melhor que nas outras fazendas. O gato nunca deixou faltar comida, água limpa e sempre pagou em dia.”
Seu resgate, juntamente com o de outros trabalhadores, ocorreu em 2004 em uma fazenda na região de Mutum, em Mato Grosso, por uma equipe de auditores do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e procuradores do Ministério Público do Trabalho. O Estado é um dos que mais registram denúncias de trabalho escravo rural no Brasil, principalmente nas atividades de carvoaria e preparo de pasto para a pecuária. O Pará está na liderança.
Na área urbana, o problema está concentrado em São Paulo, principalmente nas indústrias de confecção e construção. Mas há registros em outros Estados, como Minas Gerais e Rio de Janeiro. Segundo o MTE, no ano passado, 1.066 trabalhadores foram resgatados em áreas urbanas, em 45 operações.
No caso de Carlito, após a fiscalização, o “posto de trabalho” foi fechado quando constatadas as condições desumanas em que os profissionais exerciam suas atividades. O fazendeiro, com o qual nunca tivera contato, foi obrigado a assinar a carteira e a promover a rescisão contratual de todos, pagando verbas trabalhistas devidas, como férias e horas extras.
No Brasil, submeter alguém à condição de trabalho similar a de escravo é crime, tipificado no artigo 149 do Código Penal. A conduta se caracteriza pelos trabalhos forçados, jornadas exaustivas, condições degradantes de trabalho e restrição da locomoção do trabalhador, seja em razão de dívida ou outro motivo. Acrescente-se a isso, a vigilância ostensiva e a retenção de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de mantê-lo no local de trabalho.
Na Justiça do Trabalho, que pune com cada vez mais rigor empregadores flagrados nessa situação, os tribunais se baseiam em tratados internacionais, na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – que prevê as condições para o exercício profissional e obrigações do empregador – e principalmente no artigo 1º, incisos III e IV, da Constituição Federal. O dispositivo constitucional estipula como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
A indenização mais alta paga por empresa em razão da prática, segundo o MPT, foi de R$ 15 milhões. No caso, foi fechado um acordo no Judiciário. O processo envolveu a construtora OAS, responsável pelas obras do Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, no ano passado e parte desse dinheiro foi revertido para a própria acomodação e regularização dos trabalhadores provenientes de outros Estados. Na ocasião, foram resgatadas 111 pessoas.
Apesar do montante ser o mais significativo, o caso considerado emblemático por profissionais da área foi finalizado em 2012 pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST). Foi a primeira vez que um processo sobre o tema transitou em julgado na Corte – quando não há mais recurso. O tribunal manteve decisão de segunda instância que determinou à Construtora Lima Araújo e à Lima Araújo Agropecuária o pagamento de danos morais coletivos de R$ 5 milhões por trabalho escravo em fazendas do grupo no Pará, por práticas reiteradas, que iam desde a falta de água potável até a venda de equipamentos de proteção individual, atraso nos pagamentos e inexistência de folgas.
O valor pedido pelo MPT no processo era superior a R$ 80 milhões, mas foi fixado em R$ 3 milhões na primeira instância e posteriormente em R$ 5 milhões pelo Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região. O TST entendeu que o valor era justo e razoável, pois a condição de trabalho escravo ou similar acarreta ofensa frontal à dignidade da pessoa humana e, “reflexamente à todo o sistema protetivo trabalhista e aos valores sociais do trabalho protegidos pela Constituição”. Para o tribunal, a punição teria o objetivo de inibir condutas semelhantes.
Participante de inúmeros resgates como membro do Ministério Público do Trabalho ao longo de uma carreira de 25 anos, o procurador-geral do trabalho Luís Antônio Camargo de Melo afirma que a situação do trabalho escravo contemporâneo no Brasil é grave, mas avalia que já foi infinitamente pior. Ainda assim, para ele, não há dúvidas de que caminhamos para erradicar esse mal.
“Quando? Não sei. Mas o Estado brasileiro se comprometeu com essa tarefa e estamos muito melhor do que há 20 anos, pois temos uma atuação articulada [entre MPT, MTE, polícias e entidades civis] e um tratamento sigiloso das denúncias”, diz. Esse avanço, segundo ele, só foi possível a partir de 1995 quando o Brasil assumiu o problema e passou a combatê-lo.
A busca pela responsabilização das empresas pelo trabalho escravo, ainda que a prática seja da contratada terceirizada, começou na década de 90 pelo MPT. De acordo com Melo, é a teoria do domínio do fato, que desde aquela época é adotada pelo órgão. Nesse sentido, quem terceiriza e se beneficia do trabalho escravo deve ser responsabilizado. A aplicação desse entendimento pelo Ministério Público ocorreu muito antes do julgamento do mensalão (Ação Penal 470) pelo Supremo Tribunal Federal, quando ficou popularmente conhecida.
“Essa é a única forma de responsabilizar o principal beneficiário da cadeia produtiva”, afirma. A teoria começou a ser aplicada em processos que envolviam siderúrgicas na cadeia produtiva do carvão vegetal. “Não adiantava ir atrás do produtor de carvão, pois a siderúrgica sempre acharia outro que vendesse. A partir do momento em que elas foram responsabilizadas, tiveram problemas com seus parceiros comerciais no exterior e contratos rompidos, passaram a tomar mais cuidado com a compra do carvão.”
É em razão dessa teoria, que hoje grandes grupos da indústria da confecção respondem a autuações ou a processos judiciais por trabalho escravo contemporâneo. “Os responsáveis sempre negam que sabiam do trabalho escravo da terceirizada. Isso você sempre vai escutar, mas eles se beneficiavam e isso é o que importa”, afirma.
Nos últimos anos, foram vários casos nas áreas urbanas que ganharam as manchetes dos noticiários. Exemplos recentes são da varejista espanhola Zara que fechou um acordo de R$ 3,4 milhões – um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) – com o MPT, que a investigava pela prática de confecções terceirizadas. Já as Casas Pernambucanas respondem a uma ação civil pública proposta pelo MPT sobre o assunto, com audiência marcada para 6 de junho. De acordo com o procurador-geral, as denúncias em áreas urbanas começaram a crescer a partir de 2000 e naquela época já envolviam bolivianos.
O chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do MTE, Alexandre Lyra, afirma que, em algumas fiscalizações, verificou-se que trabalhadores recebiam em média R$ 1,50 por peça fabricada, trabalhavam em média 16 horas, viviam no mesmo local onde trabalhavam – casas de poucos cômodos, que abrigavam de três a quatro famílias – e demonstravam um enorme medo da deportação. Na percepção de Lyra, o trabalho escravo urbano sempre existiu, mas as atenções estavam mais voltadas para o campo, pois foi de onde surgiram as primeiras denúncias. Já o procurador-geral do trabalho credita o aumento das denúncias em áreas urbanas ao crescimento econômico da última década.
Lyra acrescenta que, apesar de das área serem diferentes, tanto na zona urbana quanto na rural o tratamento a que são submetidos os trabalhadores é o mesmo: desrespeito à dignidade humana.
A maior parte das investigações realizada pelas autoridades brasileiras (MPT, MTE e polícias) tem origem em denúncias, que chegam por diversos meios. Desde o espaço previsto no site do MPT, denúncias repassadas por ONGs, ao testemunho do próprio trabalhador que conseguiu fugir do local onde estava.
O procurador regional da Coordenadoria do Combate ao Trabalho Escravo do Mato Grosso, Thiago Ribeiro, afirma que após a denúncia é aberta uma investigação que, se tiver fundamento, levará a uma diligência ao local – que normalmente envolve o grupo móvel de combate ao trabalho escravo, existente desde 1995, e formado por procuradores do trabalho, auditores e policiais. Constatada a condição de trabalho escravo, há o resgate.
Nesse momento, busca-se fazer com que o proprietário assine a carteira do trabalhador e pague o salário e demais verbas devidas. “Se isso não ocorrer uma ação em caráter de urgência já é ajuizada para assegurar o pagamento, sob pena de multa significativa”, diz Ribeiro. Nessas ações, normalmente, são pedidas as indenizações por danos morais coletivos, cujos valores estão cada vez mais altos. O montante arrecadado, em muitos casos é revertido em projetos de educação e cursos profissionalizantes dos trabalhadores. Como no caso de Carlito da Silva. Após seu resgate, ele fez um curso de eletricista oferecido dentro de um projeto de assistência ao trabalhador resgatado mantido pelo MPT, MTE e entidades parceiras. Ele está há seis anos em uma mesma empresa em Cuiabá e se orgulha de agora ter uma profissão.
Procurados pelo Valor, o grupo Inditex, controlador da Zara, e as Casas Pernambucanas enviaram notas sobre o assunto. O Inditex afirma que sempre investiu em uma política de controle da cadeia produtiva. Em 2011, conforme a nota, um fornecedor, responsável por menos de 3% da produção no país, burlou o código de conduta do grupo, o que levou a um rompimento das relações comerciais. Já as Casas Pernambucanas informou que tem investido todos os anos em mecanismos e processos que desenvolvam a qualidade e a lisura de seus fornecedores. Isso tudo, no entanto, diz nota, “não é suficiente caso algum ente do mercado atue de má-fé”. A OAS e o Grupo Lima Araújo não deram retorno.
Do Valor Econômico