Para democratizar a palavra
Sindicalistas de 27 países da América articulam rede de comunicação para dar voz ao mundo do trabalho. A iniciativa deve mexer na política e no orçamento das entidades
O que há em comum entre o drama dos mineiros soterrados no Chile, os cortes de salários e programas sociais na Irlanda, a política de valorização do salário mínimo no Brasil e a exploração eleitoreira de uma bolinha de papel? E entre o aumento da idade em dois anos para o recebimento de pensões e aposentadorias na França e a recente decisão pela redução – em até 10 anos – para o acesso aos mesmos benefícios sociais na Bolívia? Além da óbvia opção sobre distintos projetos de sociedade e de país, são fatos que impactam a vida de milhões de pessoas e nos são contados por meios de comunicação de acordo com os interesses políticos de seus proprietários. São emissoras de rádio e televisão, portais de internet, jornais e revistas que interpretam a realidade conforme sua visão de mundo – e a distribuem como verdade.
Em espanhol, há um verbo que expressa a desconsideração total, o menosprezo pelo outro e sua transformação em ninguém por parte das grandes empresas comerciais de comunicação: ningunear. Cansados de se ver e ouvir por fontes que consideram desinformativas, sindicalistas, intelectuais e representantes de movimentos sociais de 20 países têm trabalhado para conformar uma nova rede de comunicação. “Michel Foucault dizia que o poder se exerce em rede. Se isso é certo, acrescentamos que o poder se constrói em rede. E a isso vamos”, afirma Victor Báez, secretário-geral da Confederação Sindical dos Trabalhadores das Américas (CSA), entidade organizadora da iniciativa, que ganhou vida em Montevidéu em novembro passado. A CSA congrega 59 centrais de 27 países e mais de 50 milhões de trabalhadores.
Conforme Báez, a experiência dos mineiros chilenos demonstrou como o monopólio dos meios pode impactar diretamente a vida dos trabalhadores. “Naquele episódio, os meios privados se concentraram apenas na ação de resgate. Com isso, conseguiram ocultar as verdadeiras causas do desastre, ou seja, a falta de investimentos em segurança por parte da empresa e a ausência de fiscalização por parte do governo.” Apesar do alerta dos sindicatos, a denúncia ficou isolada e a notícia não se difundiu. “Esse fato nos fez recordar o ocorrido no México, em Pasta de Conchos, onde 65 trabalhadores estiveram enterrados a 490 metros de profundidade, sem nenhum tipo de auxílio da empresa. Ali morreram. O líder sindical que denunciou o acidente, devido à falta de condições de segurança, teve de se exilar no Canadá, perseguido pela empresa e pelo próprio governo mexicano”, relata. A soma desses descalabros virou fermento de ideias e foi vitaminando a articulação da rede.
Sem reunir as mínimas condições de segurança, e com risco iminente para os operários, outras 18 minas acabaram sendo fechadas no Chile pelo Serviço Nacional de Geologia e Mineração, após intensa mobilização sindical e da própria sociedade, emocionada pelo drama. Nas notificações, realizadas após o escândalo, foram evidenciadas violações das normas mais elementares de segurança, como a inexistência de pelo menos duas rotas de fuga, a falta de chaminés de ventilação e mesmo de abrigos subterrâneos. O leitor deve ter visto a superficialidade da tal cobertura “jornalística”: nenhuma palavra a respeito da falta de pagamento dos salários ou do dinheiro público que precisou entrar para que os mineiros pudessem sair, já que a empresa alegou não dispor de recursos para o socorro.
Nas palavras do jornalista basco Unai Aranzadi, transmitidas em vídeo aos participantes da Conferência Sindical sobre Democratização da Comunicação, que lançou as bases para a rede, muita determinação é necessária, pois as “frentes de guerra número um, dois e três estão nos meios de comunicação e no controle da opinião pública”. Segundo Aranzadi, padrões de manipulação e de silêncio impostos pelos conglomerados privados “prostituem a informação” em troca da liberdade de empresa e do discurso único do “partido do capital”.
Entusiasta da iniciativa, o uruguaio Aram Aharonian, fundador da emissora Telesul e dirigente do Observatório Comunicação e Democracia, da Venezuela, lembra que há três décadas, para impor-se um modelo político-econômico, se recorria às armas, com um saldo de milhares de mortos, desaparecidos e torturados. “Hoje, os meios de comunicação de massa levam o bombardeio da mensagem hegemônica diretamente à sala de nossa casa, 24 horas por dia.” Para Aharonian, as grandes corporações manejam um “latifúndio midiático” e criam imaginários coletivos virtuais. “Elas decidem quem tem a palavra, quem é o protagonista e o antagonista e trabalham para que as grandes maiorias sigam mudas e invisíveis.”
Presente boliviano
A aprovação da nova Lei de Pensões apresentada pelo governo de Evo Morales, em conjunto com a Central Obrera Boliviana (COB), rebaixa a idade da aposentadoria de 65 para 58 anos, restabelece a contribuição patronal de 3% – desde 1996 os empresários não contribuíam com a previdência –, elimina as administradoras privadas de pensões, que estavam concentradas no grupo suíço Zurich e no espanhol BBV, e cria uma única administradora e gestora dos benefícios, de caráter público. Para os bolivianos, um “presente de Natal”. Para a imprensa do continente, um exemplo a ser riscado do mapa. Compreensível: a nova lei rompe com o processo neoliberal.
Mas essa experiência de “reforma” não vira manchete, pois mais de 80% das informações que chegam da Bolívia são produzidas e distribuídas por agências de Santa Cruz de la Sierra, onde se concentra a oposição de direita, capitaneada pelos barões do sistema financeiro, do agronegócio e da mídia.
A atual batalha pela “democratização da palavra” busca modificar uma norma que foi útil para a doutrina de segurança nacional das ditaduras e para as políticas neoliberais que as sucederam. De acordo com o jornalista Mariano Vázquez, responsável pela comunicação da Central dos Trabalhadores da Argentina (CTA), a rede de comunicadores sindicais tende a romper a censura dos monopólios midiáticos, encabeçados pelo grupo Clarín. “A luta no campo das ideias e na mobilização popular se conjuga com a decisão política do governo de Cristina Kirchner, que há dois anos enviou ao Parlamento um projeto de lei que dê a palavra a todos.” Vázquez sublinhou que a nova legislação democratiza o acesso à informação definido como “direito universal”, em concordância com o artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
A secretária nacional de Comunicação da CUT, Rosane Bertotti, lembrou que várias medidas oxigenadoras foram debatidas pela sociedade brasileira e aprovadas na Conferência Nacional de Comunicação, devendo agora ser tiradas do papel. Muitas delas, aliás, fazem parte do arcabouço legal, mas nunca foram regulamentadas, como o princípio da complementaridade entre os sistemas de radiodifusão público, privado e estatal, contido no artigo 23 da Constituição Federal. “A democratização da comunicação é um passo essencial para o aprofundamento da democracia”, resume Rosane, reforçando a necessidade de investimento na rede. A CUT tem ampliado recursos na estruturação de seus próprios canais de TV e rádio, com produção e divulgação de conteúdos que coloquem os trabalhadores como protagonistas, e também apoiado sistematicamente iniciativas como a Rede Brasil Atual e a TVT.
O processo de revisão das leis sobre os meios de comunicação na América Latina, em especial rádio e TV, é natural e irreversível, segundo o diretor nacional de telecomunicações do Uruguai, Gustavo Gómez Germano. “Trata-se de um processo de re-regulação, porque o sistema anterior habilitava e fomentava a concentração dos meios de comunicação nas mãos de uns poucos e criava obstáculos de acesso às grandes maiorias”, observa. Para Gómez, cada Estado nacional deve adequar suas legislações para impedir a formação de monopólios e oligopólios no setor. “Se o Estado não desempenha um papel ativo, a democratização não será possível, o livre jogo da oferta e da demanda não diminuirá os abismos existentes em nossas sociedades”, acrescenta.
Representante da Agência Latino-Americana de Informação (Alai), Osvaldo León acredita que o momento é favorável à concretização de redes que impulsionem a democracia: “Os grandes oligopólios midiáticos agridem o verdadeiro papel e a responsabilidade dos meios de comunicação. Pluralidade e diversidade não entram nesses meios que aí estão. Reconhecemos a necessidade de investir e de contar com instrumentos próprios. Se não dizemos nossa própria palavra, os outros a dizem por nós”. A iniciativa vai mexer na política das entidades e também em seus orçamentos.
Da Revista do Brasil (Leonardo Severo)