Para encarar racionamento de água que Alckmin nega, o jeito é improvisar
Garrafas pet são as escudeiras da família de Marina Simões para garantir a água da casa, que não tem caixa de água
Falta de água virou rotina em vários bairros de São Paulo, mas população não relaciona crise de abastecimento com má gestão do governo paulista
O governador de São Paulo e candidato a reeleição, Geraldo Alckmin (PSDB), nega repetidamente haver racionamento de água na capital paulista. No entanto, a população das regiões norte, leste e oeste sofre com a alteração da rotina desde março. Cozinhar, lavar roupa e tomar banho só é possível antes de o sol se pôr. O padeiro que entrava à noite para adiantar a fornada da manhã, agora entra cedinho. Tudo porque as torneiras secam todas as noites nos bairros, sem aviso ou justificativa.
Duas pesquisas recentes apontavam que a população passa por um racionamento de água não declarado. O Instituto Datafolha, em agosto, concluiu que 46% dos paulistanos tinham sofrido interrupção no fornecimento de água, até 30 dias antes. No último dia 2, foi a vez de o Ibope revelar que 38% dos paulistanos tiveram o abastecimento cortado nos últimos três meses. Os dados demonstram que, em alguns lugares, a água não tem chegado regularmente.
Moradores e comerciantes dos bairros de Vila Maria Alta, Jardim Japão e Parque Novo Mundo (zona norte), Jardim Romano (leste) e Jardim Previdência (oeste) relatam que a água “some” todas as noites, entre 19h e 20h. E que as caixas só começam a encher a partir de 5h do dia seguinte, mas quando eles procuram a Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (Sabesp) são informados de que não há nada de irregular no fornecimento.
“Moro aqui há dez anos. Não é uma coisa comum. Começou em março deste ano, todos os dias, a partir das 20h. Às vezes, um pouco mais cedo, outras, um pouco mais tarde. E só volta na manhã seguinte”, explica a aposentada Elza Mufalo, de 60 anos, moradora da Vila Maria. Na casa dela, só a descarga do banheiro está ligada na caixa d´água. Então, ela definiu que tudo que envolva uso da água da rua, inclusive o banho, deve ser feito antes de o sol se pôr.
Porém, a 300 metros dali, moradores da Vila Maria Alta não perceberam cortes no fornecimento. O trabalhador autônomo André Luiz Cancela avalia que, como os cortes são aleatórios, a água chega a alguns lugares e não a outros. Além disso, quem tem uma caixa d´água grande consegue passar pelo período seco adotando algumas medidas de economia, como reaproveitar água da lavagem de roupas e tomar banhos rápidos. “E pode nem perceber que a caixa não está enchendo durante a noite”, afirma.
Contudo o Parque Novo Mundo, o forró que virava as noites de sábado no Bar do Bigode está cancelado. A gerente do estabelecimento, Geralda Lopes, explica que, sem água a partir das 20h, não tem como manter o atendimento até a madrugada. “Não posso fazer suco, a louça vai amontoando, os banheiros ficam impossíveis”, descreve. E isso, apesar de ter mudado algumas práticas, como a limpeza do espaço, que agora é somente com pano úmido.
No térreo do sobrado em que Elza mora, funciona a padaria Dalvares, que também enfrenta o desabastecimento noturno. Algumas mudanças na rotina do trabalho tiveram de ser feitas, para ser possível fazer pão. Então, o padeiro, que entrava às 22h e trabalhava durante a madrugada, passou a entrar às 6h. Isso atrasou a produção e impôs um ritmo mais pesado, segundo o gerente Edvaldo Duarte.
Ao pensar na causa do problema, as pessoas mencionam a seca que atinge o estado e é “a pior em 80 anos”. Que não chove mais como antigamente. Que o clima está mudando. Poucas responsabilizam o governador Alckmin e a estatal Sabesp.
Dados Instituto de Astronomia e Geofísica da Universidade de São Paulo (IAG-USP) indicam que este foi o período com menos chuvas desde 1969. O pior desde a criação do Sistema Cantareira, em 1973. No entanto, os dados de mananciais disponibilizados pela própria Sabesp já demonstravam que, desde maio de 2013, as chuvas estavam menos intensas do que em anos anteriores. E nada foi feito.
O próprio documento de outorga para captação de água do Cantareira pela Sabesp, de 2004, já definia que a companhia devia realizar ações para reduzir a dependência do sistema. E, em 2009, um relatório elaborado pela Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo (Fusp) pontuou que o sistema estava no limite da capacidade de fornecimento.
No Jardim Romano, abastecido majoritariamente pelo Alto Tietê, a situação não é diferente. A dona de casa Marina Simões guarda água em garrafas pet de dois litros, baldes e bacias. Mesmo assim, a filha mais velha não consegue tomar banho quando chega do serviço, às 22h. “Ela toma banho de manhã, porque a água que tem à noite é pra cozinhar, beber. Vai que não volta de manhã?”, cogita.
Ligar para a Sabesp também não costuma ser esclarecedor, segundo conta a aposentada Darci dos Santos Braga Duarte. Às vezes, se resolve “magicamente” a falta de água. “Tem dias que dá 9h e a água ainda não voltou. Daí a gente liga na Sabesp e eles dizem que não tem nada de errado. Quinze minutos depois, a água volta”, relata.
Na padaria de Ernesto Morais de Azevedo, o banheiro ganhou uma placa escrito “quebrado”, mas ele confessa que não é verdade. “Não posso gastar água com a descarga e a limpeza do banheiro, porque pode faltar para fazer o pão”, diz. Azevedo também garante que a situação começou neste ano. “Em cinco anos que tenho o comércio, nunca tinha faltado água.”
O sociólogo Gérson Brandão Júnior relata que já tomou alguns banhos de caneca neste ano, pois a volta do trabalho leva mais tempo do que a água para sumir dos canos. “Estamos deixando três galões de dez litros e mais umas garrafas pet sempre abastecidas. Quem vem do centro pra cá, depois do trabalho, tá sofrendo bastante, porque 19h30 não tem mais água”, reclamou.
O jornalista Cyro Queiroz Fiuza, morador do Jardim Previdência, na zona oeste da cidade, contou que, além do racionamento noturno diário, chegou a ficar 48 horas sem água na semana passada. “É um absurdo o governo estadual dizer que não tem racionamento”, protesta.
Além dele – e dos demais entrevistados – pelo menos duas centenas de pessoas relataram falta de água nos últimos quatro meses em São Paulo, por meio do mapa colaborativo Faltou Água. Vila Madalena, Jardim Bonfiglioli, Butantã, Rio Pequeno (zona oeste); Vila Monumento, Ipiranga, Interlagos (sul); Jaçanã, Casa Verde, Jaraguá, Vila Guilherme, Perus (norte); e Itaim Paulista, Arthur Alvim, Cidade Tiradentes, São Miguel Paulista (leste) são alguns dos bairros relacionados onde falta água “regularmente” todas as noites.
A RBA procurou a Sabesp para questionar as causas da falta de água nos bairros, mas não teve retorno.
O Sistema Cantareira abastece oito milhões de pessoas nas regiões leste, norte e centro da capital paulista, além de 11 cidades da região metropolitana de São Paulo. Com a crise, admitida em 20 de fevereiro deste ano, o governo paulista ofereceu desconto de 30% na conta para quem reduzisse 20% no consumo de água médio de 12 meses.
Como isso não foi suficiente para que o nível das cinco represas que formam o Sistema Cantareira caísse menos por dia, a média diária é de 0,2%, a solução foi retirar água dos sistemas Alto Tietê e Guarapiranga para suprir parte da demanda do Cantareira. E utilizar o chamado “volume morto”, água que fica abaixo das comportas de saída por gravidade, que serve como sobrevivência do manancial. O esgotamento pode levar à seca irreparável das represas.
Hoje (12), o Cantareira atingiu 9,5% da capacidade, contando o volume morto. O governo Alckmin cogita utilizar também o volume morto do Alto Tietê, que chegou ao pior nível da história em agosto. Esse sistema está com apenas 14,1% da capacidade.
Da Rede Brasil Atual