Plano antimiséria quer achar 800 mil famílias fora do Bolsa Família
O artigo número três da Constituição brasileira de 1988, um calhamaço de 347 artigos entre permanentes e transitórios, lista como um dos “objetivos fundamentais” do país “erradicar a pobreza e a marginalização”. Vinte e três anos e cinco presidentes depois, a erradicação da pobreza extrema vai se tornar a bandeira principal de um governo, com o lançamento, previsto para 2 de junho, do programa Brasil Sem Miséria.
Num evento planejado para lotar o Palácio do Planalto com ministros, governadores, prefeitos e representantes da sociedade civil e se transformar num grande fato positivo para o governo, às voltas com problemas patrimoniais do ministro Antonio Palocci, a presidente Dilma Rousseff anunciará como deseja transformar a vida de 16,2 milhões de pessoas que, nas contas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), vivem no máximo com R$ 70 mensais.
O programa combinará três tipos diferentes de ações. O governo continuará fazendo transferência de renda via Bolsa Família, mas vai juntar a isso esforços para levar mais infra-estrutura (luz, água, esgoto, escolas) aos miseráveis, ao mesmo tempo em que tentará criar condições, por meio de “inclusão produtiva”, para que eles consigam tocar a vida sozinhos.
“Se reduzir a pobreza exclusivamente à renda, não resolvemos a falta de luz, de água, de saneamento, o problema das escolas”, diz em entrevista exclusiva à Carta Maior a secretária Extraordinária de Combate à Pobreza Extrema do Ministério do Desenvolvimento Social, Ana Fonseca.
Uma das principais coordenadoras do plano, a historiadora cearense conta que uma das ações mais importantes do programa será uma “busca ativa” por 800 mil famílias que o governo acredita que têm direito a transferência de renda, mas que não recebem porque até agora não foram identificadas pelo Estado brasileiro.
Segundo Ana, seria impossível tocar o plano sem crescimento econômico. O país não teria fôlego financeiro para sustentar um Bolsa Família com mais de R$ 15 bilhões anuais, nem canteiros de obras públicas que pudessem ser aproveitados na “inclusão produtiva”. “Uma década atrás, não faríamos esse programa”, afirma.
De acordo com ela, o programa terá metas parciais para serem atingidas ano a ano, começando já por 2011. Dará atenção especial à zona rural, onde um quarto da população vive na pobreza extrema (nas cidades, são 5%). E marcará um gol de placa se superar o desafio de tirar da pobreza crianças e adolescentes, que “têm de brincar e estudar, não trabalhar”.
Abaixo, os principais trechos da entrevista, concedida na última sexta-feira, dia 27/05.
O plano contra a miséria está pronto para ser lançado dia 2 de junho?
Ana Fonseca: Está pronto, mas não está fechado, são duas coisas diferentes. O orçamento ainda precisa que a presidenta bata o martelo. Mas várias das ações já estão definidas. Por exemplo, na inclusão produtiva rural, vamos trabalhar com fomento a fundo perdido, distribuição de sementes da Embrapa, com água. Também vamos ter uma atividade importante que chamamos de “busca ativa”. Imaginamos que existam ainda 800 mil famílias não localizadas pelo Estado brasileiro com direito a transferência de renda mas que não recebem.
Essa “busca ativa” vai aumentar o público-alvo do plano, que são aqueles 16,2 milhões de brasileiros que vivem com até 70 reais por mês identificados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)?
Ana Fonseca: Nós ainda não sabemos quem, dentro deste grupo de 16 milhões de pessoas, recebe transferência de renda, porque até agora só trabalhamos com o censo preliminar do IBGE, não com o definitivo. O definitivo é que trará uma informação mais completa sobre a renda das pessoas, se elas trabalham, se recebem aposentadoria, pensão, transferência do tipo BPC (Benefício de Prestação Continuada) ou Bolsa Família. Então, aquelas 800 mil famílias podem ou não estar aí dentro. Só vamos enxergar isso quanto tivermos o questionário completo do censo, com a renda aberta das pessoas.
Quando este cruzamento vai estar pronto?
Ana Fonseca: O IBGE nos prometeu o censo completo para o mês de outubro.
Por que o governo desconfia de que há 800 mil famílias fora do Bolsa Família?
Ana Fonseca: Porque o cadastramento de pessoas pobres em alguns estados está muito abaixo da nossa expectativa.
Está abaixo do “potencial de pobreza”…
Ana Fonseca: É triste falar isso, mas é verdade. Por isso que estamos falando de uma busca ativa e, na pactuação com os estados, estamos pedindo empenho para a localização desses brasileiros.
A linha de corte do plano são pessoas com até 70 reais por mês, mas elas não têm contracheque, a identificação delas, imagino, é até visual. Só que a vida de quem ganha, digamos, 80 reais não é muito diferente. Como o governo fará para efetivamente chegar ao público-alvo?
Ana Fonseca: A linha de corte de renda não é critério de elegibilidade para participar do plano, mas para o monitoramento do plano. Nós pegamos aquele grupo identificado pela renda e fomos olhar: “tem energia elétrica? Tem água? Tem esgoto? Tem documento?” Ou seja, fomos atrás das outras dimensões da pobreza. O que é a pobreza se não o déficit de direitos? A linha de 70 reais nos serviu para mensurar o déficit de bem-estar social no Brasil. Depois, ela vai servir para monitorar o plano.
Se a renda não é um critério, significa que é possível que uma pessoa que viva com 70 reais esteja fora do plano, assim como uma que ganhe 80 reais esteja dentro?
Ana Fonseca: É difícil responder porque não teremos um modelo padrão para o Brasil. Nós vamos fazer um plano mais adequado à região Nordeste, outro mais adequado à região Norte, ao Centro-Oeste, ao Sul, ao Sudeste. É isso que mais se destaca no plano, a pactuação com os estados, para que as parcerias atendam as necessidades específicas de cada um. É possível que um estado com mais orçamento queira atuar mais na transferência de renda, enquanto outro, sem recursos, precise mais da gente na questão dos serviços, da infra-estrutura.
Como o impacto da pobreza no campo é maior que nas cidades, o plano vai dar atenção especial à zona rural?
Ana Fonseca: A pobreza no campo é muito mais acentuada, vamos dar sim uma atenção especial. Seja no tema do acesso à água, à assistencia técnica, acesso a mercados, isso é funamental no plano.
É mais fácil enxergar inclusão produtiva no campo, porque a pessoa pode viver de agricultura, é quase um caminho natural. Mas, e nas cidades?
Ana Fonseca: Se pensarmos apenas nas obras relacionadas à Copa [de 2014 no Brasil] e às Olimpíadas [de 2016 no Rio], você vai ver que temos muitas oportunidades nas cidades. Além disso, o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] tem arranjos produtivos locais em 22 estados, e nós estamos conversando para que haja atividades por aí também.
Como funcionaria essa inclusão por meio de obras da Copa e da Olimpíada? O governo vai pedir para as empreiteiras contratarem trabalhadores pobres?
Ana Fonseca: É algo semelhante a isso. Estamos olhando também atividades do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] e do Minha Casa, Minha Vida em busca de oportunidades de ocupação. Na construção de creches e de unidades de saúde, vamos colocar no plano que se busquem ao redor da obra, no nosso cadastro único, pessoas com X características, para que elas sejam capacitadas.
O plano está dividido em três dimensões: transferência de renda, inclusão produtiva e infra-estrutura. Alguma delas tem mais peso que as outras?
Ana Fonseca: Se o problema da pobreza extrema fosse transferência de renda, estava resolvido. Nós temos capacidade, infra-estrutura bancária para chegar a todos os pobres. Mas, se reduzir a pobreza exclusivamente à renda, não resolvemos a falta de luz, de água, de saneamento, o problema das escolas. Então, as três dimensões têm de estar juntas, para a gente potencializar a oportunidade atual. É claro que a sociedade fica contente com o tema da inclusão produtiva, por causa da leitura da “porta de saída”. E essa inclusão fica mais fácil com o Brasil crescendo. Mas a transferência de renda será uma perna forte do plano.
A senhora disse que o crescimento ajuda na inclusão produtiva. Esse é um raciocínio que o governo aplicaria ao programa todo, quer dizer, seria possível fazer o Brasil Sem Miséria sem crescimento?
Ana Fonseca: Uma década atrás, não faríamos esse programa. Ontem, tive chance de ver trechos daquele documentário Garapa. Tinha uma cena em que o marido saía com um jumento e duas criancianhas atrás de água, enquanto a mulher ia buscar cesta básica que alguém ia distribuir, mas ela volta sem nada. Para enganar a fome, ela dava água com açúcar para as crianças. Esse filme foi gravado em 2002. De 2003 para cá, o Brasil mudou muito. Houve ampliação do mercado interno, e nisso as transferências de renda como o Bolsa Família e o BPC foram importantes, junto com a valorização do salário mínimo. Já reduzimos drasticamente a pobreza, então, parte do caminho já foi percorrido.
Como será a mensuração do plano? Ele vai ter metas parciais, ano a ano?
Ana Fonseca: Teremos um sistema de monitoramento que não definimos ainda se será quadrimestral. Olharemos pelos déficits. Por exemplo, temos 308 mil domicílios sem luz elétrica, e a expectativa é que eu chegue a 2014 com isso zerado. Sei que tenho 150 mil brasileiros sem documentos, queremos zerar esse número até 2014 também. Vamos ter metas parciais, inclusive já para 2011. Existem algumas áreas na zona rural que se não plantar agora, não produz até dezembro.
Quando se embalam todas as ações do plano, e muitas já existem, o plano é sobretudo uma articulação de ações, qual é o tamanho dele em termos financeiros?
Ana Fonseca: Mas nós teremos muita inovação também, então, ainda não fechamos o orçamento. Fizemos ontem [dia 26/05] uma reunião com a junta orçamentária para apresentar os números e depois vamos apresentar para a presidenta, para que ela bata o martelo.
Qual a senhora diria que será o grande desafio do Brasil Sem Miséria, aquilo que, se for concretizado, poderá ser considerado um gol de placa?
Ana Fonseca: Ah, superar a pobreza dos jovens. Veja que 39% da pobreza extrema atinge jovens até 14 anos. Você não bota crianças e adolescentes para trabalhar, não tem inclusão produtiva para eles, eles têm de brincar e estudar. Para eles, o fundamental é a educação.
Da Carta Maior