“Política do governo fez país sofrer pouco”
O secretário-geral da OCDE, Angel Gurría, disse que o Brasil deve ter cautela com medidas de estímulo fiscal. Ele está certo?
João Saboia: Creio que ele conhece pouco a economia brasileira e não está levando em consideração que o custo da dívida pública está se reduzindo bastante com a queda dos juros, abrindo espaço para a manutenção do equilíbrio fiscal mesmo com redução da receita e aumento dos gastos.
Valor: O governo deve adotar novas medidas de redução de impostos, para tentar garantir mais crescimento? Há espaço para novos aumentos de gastos?
Saboia: Os indicadores disponíveis apontam para um segundo semestre bem mais favorável que o primeiro. Com isso, o governo deverá aos poucos reduzir os estímulos fiscais do primeiro semestre, especialmente na área tributária. Com relação aos gastos, sou favorável a que o governo privilegie os investimentos públicos em vez dos gastos correntes, compensando em parte os investimentos privados, que tiveram grande redução neste ano.
Valor: O governo reduziu a meta de superávit primário de 3,8% para 2,5% do PIB neste ano. É factível?
Saboia: A tendência das autoridades é sempre apresentar dados otimistas. É possível que o resultado final fique abaixo disso.
Valor: A atividade econômica parece ter reagido melhor do que se esperava no fim do ano passado. Qual o papel que a política fiscal deve ter para a variação do PIB neste ano?
Saboia: Não tenho nenhuma dúvida de que a política fiscal do governo implementada no primeiro trimestre foi a principal responsável pelo fato de o país ter sofrido relativamente pouco, comparado com o resto do mundo. Uma das vantagens do Brasil é o tamanho de seu mercado interno, e a política fiscal teve um papel muito importante para segurar o nível de consumo interno. O caso da indústria automobilística é exemplar.
Valor: Qual a perspectiva para a política fiscal em 2010? É possível fazer um superávit de 3,3% do PIB?
Saboia: 2010 é um ano eleitoral, e é bem provável que os gastos públicos permaneçam em expansão. O superávit pode aumentar em relação a 2009, mas não muito.
Valor: O governo reduziu fortemente o superávit primário e não houve reações significativas do mercado. A questão da solvência fiscal do país saiu de cena?
Saboia: A solvência fiscal é um elemento importante e nunca sairá de cena. Como os juros caíram bastante, não há mais necessidade de superávits primários tão elevados e o mercado entendeu isso. A solvência fiscal pode ser garantida com superávits primários bem menores que os anteriores.
Valor: Os investimentos cresceram 25% de janeiro a maio, mas eles atingiram apenas R$ 9,276 bilhões. Por que a União ainda investe tão pouco?
Saboia: Gastar pode ser mais difícil do que se imagina, especialmente quando considerados os investimentos, que necessitam de planejamento, licitações, ações na Justiça. O período de tempo entre a decisão de investir e sua realização pode ser muito grande. Apesar da importância do PAC para o governo, a maior parte dos projetos está atrasada em relação a seus cronogramas originais devido às dificuldades inerentes à realização dos investimentos públicos.
Valor: O governo aumentou fortemente os gastos correntes, acelerou os investimentos e concedeu desonerações tributárias importantes neste ano. Isso caracteriza uma política fiscal anticíclica bem executada? Por quê?
Saboia: Uma política fiscal anticíclica, no caso de uma recessão, passa pelo aumento dos gastos e redução dos impostos e é exatamente isso que o governo está fazendo conforme argumentado acima. Seu sucesso pode ser medido pelo comportamento da economia brasileira quando comparado com os nossos vizinhos.
Valor: As despesas correntes do governo vêm crescendo a um ritmo acelerado neste ano, superior a 20%. Quais as consequências para a economia desse aumento de gastos correntes?
Saboia: O lado positivo é que o aumento dos gastos correntes estimula a economia por seu efeito realimentador, especialmente através dos gastos dos agentes beneficiados pelo aumento da despesa corrente. Keynes já ensinava isso desde os anos 30 do século passado, através do multiplicador dos gastos do governo ou mesmo da redução dos impostos.
Valor: Em que medida a política fiscal atual restringe as perspectivas futuras de crescimento do País?
Saboia: Pelo lado dos impostos, não vejo nenhum problema, pois a carga fiscal do país é relativamente elevada e a redução atual poderá eventualmente ser compensada no futuro, quando a economia se recuperar. No caso dos gastos, a situação é distinta, pois em alguns casos os gastos se tornam definitivos, como no aumento dos salários do funcionalismo público. De qualquer forma, não vejo nenhuma ameaça ao futuro do país por conta da política fiscal que o governo usa neste ano.
Valor: Os gastos com pessoal e encargos sociais cresceram mais de 20% de janeiro a maio. É um movimento preocupante?
Saboia: Sou favorável à valorização do funcionalismo público em geral. O problema com os atuais reajustes é que houve um compromisso do governo antes da crise que fica muito difícil de reverter. Creio que com a recuperação do economia já em 2010 a arrecadação deverá aumentar de modo que provavelmente não haverá dificuldades para o governo absorver o aumento da folha de pessoal. Para uma resposta mais precisa, contudo, seria necessário verificar o custo da folha nos próximos anos.
Valor: O próximo governo receberá um país melhor ou pior do ponto de vista fiscal do que recebeu o presidente Lula?
Saboia: Se lembrarmos da situação do país no fim de 2002, quando o câmbio explodiu e os juros eram elevadíssimos, com enormes pressões sobre o déficit público, o saldo é bastante favorável à situação atual. A menos que ocorra algo inesperado até o fim de 2010, a situação encontrada pelo sucessor do presidente Lula, tanto na economia como um todo quanto do ponto de vista fiscal, será bem mais favorável que a deixada por FHC.
Valor: Quais serão os principais desafios na política fiscal para o próximo presidente?
Saboia: Creio que a principal dificuldade será levar o país a algo semelhante ao que ocorria em 2008, até o mês de setembro, quando a economia crescia a uma taxa da ordem de 6% anuais. Do ponto de vista fiscal, o principal desafio é realizar uma reforma tributária que seja mais justa, beneficiando os Estados mais pobres e a população de baixa renda, que é a que paga proporcionalmente mais impostos. Será muito difícil convencer os Estados mais ricos a abrirem mão de sua situação privilegiada em benefício dos menos desenvolvidos, o que resultaria num desenvolvimento mais equilibrado para o conjunto do país.
Valor Econômico