Ponto de Vista|Populista aos olhos de quem?

Políticos tão díspares, como Hugo Chávez e Nestor Kirchner, passaram a ser genericamente designados como "populistas". Para isso, bastava adotar uma linha de ação distante do receituário conservador

Por Flávio Aguiar

A palavra populismo fez uma longa viagem até aterrissar na América Latina.
Antes de se enraizar no glossário político, ela surgiu na Rússia e nos Estados
Unidos ainda no século 19, em ambos ligada ao meio rural. Depois, migrou para os
espaços urbanos. Diziam-se “populistas” na Rússia os intelectuais e militantes
de movimentos que pretendiam basear o poder e o controle coletivos em
comunidades rurais onde se exerceria uma democracia direta, distante da
burocracia de Estado e do autoritarismo dos czares. Os comunistas, como Lênin,
embora reconhecessem ter algumas de suas raízes históricas nesses movimentos,
criticavam suas propostas como “utópicas”, palavra desqualificadora para a
época.

Nos Estados Unidos, movimentos organizados no Partido Populista
desenvolveram-se entre agricultores e fazendeiros sobretudo na região do chamado
meio-oeste norte-americano e também no sul. Depois do fim da Guerra de Secessão,
em 1865, uma onda de “progresso” varreu essas comunidades rurais. A chegada das
ferrovias favoreceu o abastecimento dos centros industriais que se desenvolviam
a leste.

Esses movimentos visavam a garantir os preços da produção agrícola, o
financiamento das safras e vantagens legais para os produtores, diante dos novos
senhores da industrialização que queriam impor as regras do mercado. Apesar de
passarem a galvanizar parte das massas de trabalhadores urbanos, e de terem
conseguido relevância política, os populistas nunca ameaçaram a hegemonia dos
grandes capitalistas, e acabaram por se dissolver diante dos grandes traumas das
crises econômicas do século 20, como a de 1929, e do New Deal – a política de
reerguimento da economia norte-americana levada a cabo por Franklin
Roosevelt.

No Brasil o termo ganhou foro político e depois acadêmico dentro do arco
histórico que foi da Revolução de 1930 ao golpe de 1964, também designado como
“período populista”. Líderes foram assim chamados em toda a América Latina, como
Getúlio Vargas no Brasil, Juan Carlos Perón na Argentina, Lázaro Cárdenas no
México. Eram políticos cujo estilo foi caracterizado como sendo de criação de
vastas identificações carismáticas com sua persona, passando por cima de classe
ou grupo social, de situação cultural e até dos partidos criados por eles
próprios. Esse comportamento recebia críticas da esquerda – porque esvaziava a
consciência de classe dos trabalhadores em nome de identificações com políticos
que na verdade os manipulavam – e da direita – que via seus privilégios
ameaçados com a aproximação dos populistas dos mais pobres e suas
aspirações.

A mídia latino-americana, historicamente oligárquica e conservadora,
apropriou-se da palavra para carimbar genericamente políticos e políticas que se
aproximavam das reivindicações populares sem seguir as regras do liberalismo
econômico. Políticos tão díspares, como Lula no Brasil, Hugo Chávez na
Venezuela, Nestor Kirchner na Argentina ou Tabaré Vásquez no Uruguai, passaram a
ser genericamente designados como “populistas”. Para isso, bastava adotar uma
linha de ação distante do receituário conservador.

Assim, iniciativas como o Bolsa Família ou até mesmo a valorização do salário
mínimo foram enquadradas por jornais e colunistas como “populismo”, como se seu
objetivo fosse cativar lealdade eleitoral, desprezando seu efeito dinamizador da
economia e do mercado internos, ainda que de uma perspectiva capitalista, por
meio da melhoria da renda dos mais pobres.
Por isso, ao deparar com esse
termo, na imprensa e fora dela, antes de decifrá-lo, é sempre bom verificar quem
está chamando quem de “populista”, e por quê.

Flávio Aguiar é professor do programa de pós-graduação de
Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo e editor-chefe da Carta Maior
(www.cartamaior.com.br)