Progressão continuada alastra analfabetismo funcional em SP, afirmam professores
Jovens chegam ao Ensino Médio e à universidade com dificuldades para ler e escrever
Na sala de reuniões de uma escola da rede pública estadual de São Paulo, a professora de Língua Portuguesa Paula* comemora a evolução de um aluno da sexta série do ensino fundamental. “Ele escreveu o nome na capa do trabalho”, mostra a docente a três colegas e à reportagem da Rede Brasil Atual. Ele começou a ler e escrever apenas neste ano. Até o início de 2010, o garoto de 12 anos sequer abria o caderno, afirma Cristina*, responsável pela disciplina de Biologia. A professora conta que não é difícil detectar os alunos considerados “analfabetos funcionais”. “Ou ele avisa ou, na primeira leitura, eu vou perceber”, indica a docente.
O principal motivo para esse tipo de deficiência de aprendizado está, na visão dos docentes ouvidos pela reportagem, no sistema de progressão continuada, em que o aluno precisa apenas se fazer presente em sala de aula para ser aprovado automaticamente. No máximo, os alunos podem ser retidos na quarta série, por um ano, depois eles vão seguir, mesmo sem o conhecimento necessário. Os entrevistados ainda apontam problemas de infraestrutura, de salário e distanciamento das famílias.
“É comum 30% dos alunos da sexta série não saberem ler e escrever”, detecta Paula*, professora de Língua Portuguesa há 21 anos no magistério. A aprovação ano após ano, sem avaliação do conteúdo dominado pelo aluno permite que muitos estudantes terminem o ensino médio sem terem o conhecimento mínimo necessário, alerta Tomé Ferraz, professor de física e matemática das redes municipal e estadual de São Paulo.
“É a aprovação a qualquer custo”, identifica. “Em São Paulo, a educação são dados estatísticos, é porcentagem para lá, porcentagem para cá, mas não se analisa como o aluno está terminando o ensino médio. Depois ele vai ser só mais um diploma”, analisa o professor.
Paula conta que utiliza, nos primeiros dias de aula nas sextas séries em que leciona, ditado e produção de textos como ferramentas. A percepção do problema não demora. “Geralmente tem criança que entrega em branco, não sabe fazer nada do ditado”, aponta. “Se eles vão escrever, por exemplo, ´bala´, eles colocam qualquer letra”, descreve.
Apesar de lecionar Biologia, Cristina faz um esforço pessoal para trabalhar a alfabetização com os alunos cuja atuação esteja comprometida. “Se eu alfabetizei meu filho de quatro anos, eu vou conseguir com um garoto de 12”, afirma. Ela cita que os alunos têm enorme dificuldade com sílabas complexas como “tra” e “pla”. “Eles conhecem formações silábicas básicas somente”, acentua.
Na hora de avaliar alunos de sexta série, sem condições de ler e escrever com fluência, Cristina utiliza métodos diferenciados do restante da classe. “Faço avaliação com prova oral e análise comportamental, afinal se ele não compreende o teor da prova não consegue responder. Uma avaliação escrita envolve habilidade de leitura e escrita”, explica.
Sem compreender bem o conteúdo das disciplinas, o aluno de Cristina e Paula, que iniciou o ano sem estar alfabetizado, também se mostra desmotivado. Em uma única aula de biologia de 50 minutos, Cristina pediu atenção ao garoto pelo menos cinco vezes.
Analfabetismo funcional
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (Unesco), analfabeto funcional é a pessoa que sabe escrever seu próprio nome, assim como ler e escrever frases simples, efetua cálculos básicos, mas é incapaz de interpretar o que lê e de usar a leitura e a escrita em atividades cotidianas, dificultando seu desenvolvimento pessoal e profissional. Ou seja, o analfabeto funcional não consegue extrair o sentido das palavras, colocar ideias no papel por meio da escrita, nem fazer operações matemáticas mais elaboradas.
Sem coerência
Rosana Almeida, professora de sociologia da rede pública estadual, enfrenta problema semelhante com alunos do 1º ano do Ensino Médio. “Eles conseguem construir a palavra, mas não a frase”, diz. “Nós professores temos de aceitar que se a ideia dele foi certa, ele vai ser aprovado”, critica. “O jovem entendeu o que você explicou, mas não sabe escrever”.
O motivo para haver uma parcela significativa de alunos que chegam ao ensino médio sem estar devidamente alfabetizados envolve, de um lado, alunos com problemas de deficiência intelectual e, de outro, o “abandono” do sistema educacional, na visão da professora. “Você tem uma sala superlotada, a professora trabalha com quem sabe ler e escrever e quem não sabe vai ficando para trás”, expõe Paula.Entre os principais problemas dos alunos que chegam ao ensino médio, Rosana cita que “não existe mais gramática, nem conjugação de verbo”. Quando a professora pede para os alunos produzirem um texto, surge resistência. “Chega na quinta (série) não sabe escrever e não consegue acompanhar, passa para a sexta, sétima e oitava. Na oitava, tem um índice de indisciplina altíssimo porque ele, de novo, não consegue acompanhar”, sustenta.
Paula confirma que os alunos que têm essa dificuldade acabam fazendo mais bagunça. “São os mais indisciplinados. Por não saberem nem ler, nem escrever eles não entendem nada, não participam da aula; o que resta é ficar bagunçando”, desabafa. “No ensino médio, os estudantes produzem jogos de palavras sem sentido, sem coerência e coesão. Isso tem bastante, até na universidade”, completa.
O motivo para haver uma parcela significativa de alunos que chegam ao ensino médio sem estar devidamente alfabetizados envolve, de um lado, alunos com problemas de deficiência intelectual e, de outro, o “abandono” do sistema educacional, na visão da professora. “Você tem uma sala superlotada, a professora trabalha com quem sabe ler e escrever e quem não sabe vai ficando para trás”, expõe Paula.
Em matemática o problema se repete, jovens dominam as contas básicas, mas não sabem porcentagem, por exemplo. “Elas têm a capacidade de raciocínio lógico, mas fazer a conta para chegar ao resultado, as crianças não sabem”, pontua Rosana.
Problema adiado
De 30 alunos da rede municipal da capital paulista, Tomé calcula que só dois teriam condição de estar no Ensino Médio, levando em conta o conhecimento em matemática. “Em física então, os professores vão ter muito problema, no ensino médio”, relata. Para o docente os alunos da rede pública de São Paulo que se formarem serão “alguns no turbilhão”.
Eduardo*, professor universitário, mestrando e pesquisador da geração Y – jovens nascidos a partir de 1980 –, analisa que os estudantes são vítimas de um círculo vicioso fatal para a vida profissional futura. A dificuldade inicial em ler e escrever, transforma-se em dificuldade de compreensão, de reunir informações e de se expressar diante do mundo, conceitua.
“Se o aluno não compreende frases inteiras, como ele vai resolver questões de matemática?” questiona. “Eles até sabem que 3 x 5 é 15, mas se você colocar na prova quanto é o triplo de 5 mais o dobro de 20, ele não vai saber”, exemplifica. “Se questões básicas não estão resolvidas, a estrutura fica afetada e o conhecimento que vem depois não se concretiza”, alerta Eduardo.
Progressão continuada ou aprovação automática?
A progressão continuada, adotada a partir de 1998 em São Paulo, é um procedimento utilizado pela escola que permite ao aluno avanços sucessivos e sem interrupções, nas séries, ciclos ou fases, de acordo com a Agência EducaBrasil.
Para especialistas, é uma metodologia pedagógica avançada por propor uma avaliação constante, contínua e cumulativa, além de basear-se na ideia de que reprovar o aluno sucessivamente não contribui para melhorar seu aprendizado.
Sua aplicação, porém, transformou-se em sinônimo de “aprovação automática” dos alunos, segundo muitos professores e analistas.
Essa ideia leva em conta que a progressão foi adotada, no Brasil, sem se mudar as condições estruturais, pedagógicas, salariais e de formação dos professores.
* Os nomes de alguns professores foram trocados a pedido dos entrevistados
Da Rede Brasil Atual (Suzana Vier)