“Quando o Estado não se manifesta, um crime político desses parece não ter importância”, afirma Fernanda Chaves, assessora de Marielle

A assessora da vereadora Marielle Franco, Fernanda Chaves, sobrevivente do atentado que completa 1001 dias, conversou com a Tribuna.

Foto: Arquivo pessoal

Há 1001 dias o mundo segue sem respostas sobre os mandantes do crime que tirou a vida da vereadora Marielle Franco (Psol) e do motorista Anderson Gomes, na noite de 14 de março de 2018, no centro do Rio de Janeiro. Ontem, quando o atentado completou mil dias, a jornalista Fernanda Chaves, assessora de Marielle que estava no carro no momento do atentado, conversou com a Tribuna sobre o ativismo da vereadora, a luta contra o sistema opressor e a justiça esperada por todos aqueles de defendem a pauta dos direitos humanos.

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Tribuna Metalúrgica – Qual a sensação, mil dias depois de ocorrido aquele crime, não haver nada de concreto por parte do Estado brasileiro para impedir que isso ocorra novamente?

Fernanda Chaves – Chega a ser vergonhoso enquanto brasileira. A gente segue cobrando e o Estado não responde sobre um atentado político, talvez o de maior importância do século. Quando o Estado não responde prontamente ou não se manifesta como deveria, você entende que esse é um tipo de coisa que pode ser aceita e que não tem importância um crime político desse nível para o Estado.

TM – Apesar desse cenário, você acredita que teremos respostas que apontem os mandantes do crime?

Fernanda – Eu sigo acreditando que a gente vá chegar a um resultado, não é possível que as autoridades não consigam chegar a um mandante. Existem pessoas presas, mas até agora não teve um julgamento.

TM – Além de apontar quem, também precisa ser esclarecido o porquê, não é?

Fernanda – É isso, a gente precisa saber quem mandou matar e por que mandaram matar Marielle, isso precisa vir à tona. O Brasil deve isso ao mundo, é uma vergonha a gente não ter isso respondido.

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TM – Após o crime, você passou um tempo fora e decidiu voltar ao Brasil. O que mudou na sua vida desde então?

Fernanda – Sim, você tenta retornar ao cotidiano, a fazer projetos, tocar pra frente, mas normalidade não há. Mataram a Marielle, uma autoridade, uma vereadora eleita com 46 mil votos em pleno centro da cidade, na hora em que ela voltava do trabalho, embaixo de câmeras de trânsito. Então não há uma normalidade possível dentro desse quadro, o mundo não está normal. Minha vida foi virada de cabeça pra baixo. Em poucos dias já estava fora do Brasil e nunca mais voltei pra minha casa. Fui acolhida pela Anistia Internacional, fiquei como turista por três meses. Tive que começar tudo de novo e recomeçar é muito duro. Minha filha, que tinha 6 anos, ficou meio ano fora da escola, nunca mais voltou pra escolinha, não deu nem tchau pra professora. Ainda me preocupo com a minha exposição. Não é uma perda só pessoal, eu perco uma amiga, uma chefe, uma comadre, mas, como cidadã, perco também uma vereadora que lutava por um mundo melhor.

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TM – O assassinato de Marielle levanta questões sobre racismo, machismo e homofobia. Como era composto o gabinete, o mandato dela incomodava os demais na Câmara?

Fernanda – O gabinete da Marielle era diferente, parecia um pontinho de luz no meio daquela maioria de homens brancos de terno escuro. O mandato era muito diverso, a maioria mulheres, isso gerava um incômodo para um setor e para outro era o contrário, ela e os assessores dela eram muito queridos. Toda atividade da Marielle tinha uma espécie de brinquedoteca para que as crianças pudessem ficar em segurança enquanto as mães assistiam à atividade. Ela faz falta nas trincheiras das lutas, antifascistas, antirracistas e feministas.

TM – Na última eleição vimos ampliar o número de mandatos coletivos, de mulheres, negras, trans. Podemos considerá-las como herdeiras da Marielle?

Fernanda – Acho que sim, esse processo, por mais doloroso, sangrento e violento que tenha sido, impulsionou muito as mulheres. Havia muito medo, e ainda há, mas vai com medo mesmo. As pessoas estão entendendo que é urgente se colocar nesse espaço e se lançar na política.

TM – Participou da campanha da Mônica Benício, viúva da Marielle, eleita vereadora pelo Psol no Rio? Qual a importância dessa eleição?

Fernanda – Fiz a campanha, ainda que à distância. A Mônica virou a vida dela inteira em busca por justiça para Marielle. E nesse caminho ela foi se consolidando como uma liderança política e referência mundial. Ela era muito tímida, sempre militava, mas nunca se imaginou no espaço da política institucional. A busca por justiça levou a Mônica a lugares impensáveis, já falou na ONU e foi se transformando em um ícone das lutas por direitos humanos. Importantíssima a vitória dela, vai fazer muita diferença nos espaços, com essa disposição para encarar as lutas neste momento de tantos retrocessos. É surreal, mas chegou um momento em que é preciso defender o óbvio.

TM – Há quanto tempo vocês se conheciam? O que você mais admirava nela?

Fernanda – Conheci a Marielle em 2006 em uma manifestação de moradores de favelas contra o caveirão. Eu trabalhava com o Marcelo Freixo e nos tornamos muito amigas, madrinhas de casamento uma da outra, ela era madrinha de consagração da minha filha. A Marielle tinha uma característica que acho que fazia dela uma verdadeira liderança que é o poder da escuta. Ela tinha uma escuta muito apurada, era muito acolhedora e essa era uma prática na vida dela, na amizade na política, acho que isso é o que diferencia os grandes líderes. Ela também era muito festeira, no aniversário dela e das outras pessoas a gente comemorava muito.

TM – Onde acha que Marielle chegaria se ela não tivesse sido assassinada?

Fernanda – Acho que a Marielle chegaria aonde ela quisesse. Gerou uma comoção que não vemos há séculos acontecer. São muito poucos os líderes verdadeiramente populares que chegam aonde querem e acho que a Marielle seria uma dessas se quisesse ser. Tinha todo potencial para isso.

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