Resolução do Conanda veta propaganda apelativa para público infantil

Mauricio de Sousa, que possui mais de 3 mil produtos licenciados, defende a publicidade infantil

Medida considera abusiva publicidade com excesso de cores e efeitos especiais, entre outros recursos com forte apelo ao público infantil

A pequena Vitória, de 5 anos, se encantou com a propaganda da moto elétrica da Barbie. Seus olhos reluziram ao ver o brinquedo, todo rosa – como nos desenhos da famosa boneca– , enquanto assistia a um dos canais de tevê com programação exclusivamente infantil. Não teve dúvida. “Mãe, eu quero!” A mãe, Vilma Oliveira Lima, de 38, ficou apreensiva. Não imaginava o preço, mas sabia que dificilmente poderia comprar um brinquedo tão sofisticado. “Sou só eu e Deus”, diz a auxiliar de limpeza, mãe também de Érica, 8 anos.

Cada vez que via na tevê seu sonho de consumo a caçula reforçava: “Eu quero… Quero muito”. Vilma não conseguia contra-argumentar aos apelos da propaganda. Exausta após uma semana de trabalho, pegou a filha e a levou até uma loja. Tentou ainda convencer a menina a comprar outro brinquedo mais barato, mas foi vencida. Abriu um crediário e parcelou a fatura de quase R$ 800 em cinco vezes. Três dias mais tarde, o caminhãozinho da loja se contorcia nas estreitas ruas da comunidade de Vila de São Remo, na zona oeste paulistana, para entregar o presente. “Ela usou só três vezes a moto. Depois, nunca mais. Está parada em casa há quase um ano”, lamenta a mãe.

Para impedir que outras Vilmas e Vitórias sejam vítimas da sedução da propaganda, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), órgão composto por entidades da sociedade civil e ministérios do governo federal, publicou no Diário Oficial da União do último dia 4 a Resolução 163/2014, que classifica como abusiva toda forma de publicidade ou comunicação mercadológica dirigida à criança com intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço.

“Uma vez declarada essa abusividade, quem trabalha com o conceito de publicidade abusiva é o Código de Defesa do Consumidor. No seu artigo 37, proíbe a publicidade abusiva. Então, o efeito prático é a ilegalidade do direcionamento de publicidade ao público infantil”, explica o advogado Pedro Affonso Duarte Hartung, conselheiro que representa o Instituto Alana no Conanda. O instituto atua na defesa dos direitos das crianças.

Segundo a resolução, com validade a partir de sua publicação, são consideradas abusivas as campanhas que utilizem: linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores, trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança, representação de criança, pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil, personagens ou apresentadores infantis, desenho animado ou de animação, bonecos ou similares, promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil, e promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil.

O advogado explica que o Conanda fez sua função, que era nominar como abusiva a conduta publicitária dirigida às crianças, e cobra do Poder Executivo que desempenhe seu papel de fiscalizador. Orienta também os consumidores a denunciar. “Os canais são o Ministério Público Federal, as defensorias públicas, Procons e o Ministério da Justiça.”

Bom negócio

“A criança se tornou um importante público para o mercado de consumo. Consome marcas e produtos. Alguns têm até orçamento, renda como a mesada. A criança se tornou um agente econômico importante no sistema social moderno e vários recursos de marketing, de comunicação, têm nela um alvo privilegiado”, explica o professor de publicidade e propaganda Gino Giacomini Filho, da Escola de Comunicação e Artes (ECA-USP) e da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). Entre produtos e serviços, estima-se que o mercado infantil movimente R$ 50 bilhões ao ano.

Para Giacomini Filho, é preocupante o processo precoce de adultização da criança. “A propaganda vem realimentando a adultização da criança. Ela realimenta, mas por trás existe todo um esquema de moda, confecções, grifes, de mercado, dos pais, da família que também dá sinal verde para que a criança se vista dessa forma. Para que adote grifes em descompasso com sua idade”, observa.

Logo após a publicação da resolução, as principais entidades do setor de comunicação manifestaram-se contra a medida. Através de uma curta nota divulgada na última segunda-feira (7), a Associação Brasileira de Anunciantes (ABA), Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap), Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Associação Nacional de Jornais (ANJ), Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra), Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel), Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner) e a Central de Outdoors afirmaram que o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) “é o melhor e mais eficiente caminho para o controle de práticas abusivas” e que apenas o poder legislativo teria “legitimidade constitucional para legislar sobre publicidade comercial”.

Ainda segundo o professor, o que essas instituições tentam dizer é que se esse assunto for debatido e definido no Congresso, haverá mais representatividade, mais setores sociais sendo ouvidos e incorporados nessa decisão.

Veto

Em 2008, o deputado paulista Rui Falcão (PT) encaminhou à Assembleia Legislativa de São Paulo o Projeto de Lei 193/2008, que visava a regulamentar a publicidade de alimentos dirigida ao público infantil. O projeto foi aprovado em plenário no dia 18 de dezembro de 2012, porém, foi vetado em janeiro de 2013 pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), que alegou ser apenas competência da União legislar sobre publicidade e propaganda.

Entidades da sociedade civil condenaram o veto e pediram audiência com o governador tucano, mas ainda não tiveram resultados. Na pauta de reivindicações está também a aprovação do PL 1096/2011, de autoria do deputado Alex Manente (PPS), que proíbe a venda de alimentos com brindes.

“A aprovação dos projetos seria um marco na luta contra a epidemia de obesidade infantil no país”, explica Ana Paula Bortoletto, nutricionista do Idec. Ela acredita que a resolução do Conanda dará mais força a essa luta. “Fortalece os direitos do consumidor e os direitos da criança e do adolescente já garantidos por lei, porém, que nem sempre são cumpridos pela falta de uma regulamentação específica. Agora, caberá às autoridades de defesa do consumidor interpretar esta resolução e colocá-la em prática.”

Alguns players do mercado já têm mostrado sua indignação. O jornalista  Pedro Locatelli reproduziu no site da Carta Capital foto publicada no Instagram do cartunista Mauricio de Sousa. A imagem exibe uma criança com um cartaz onde, entre outras frases, está escrito: “Eu tenho direito de assistir publicidade infantil”. Ainda segundo a matéria, o jornal O Estado de S. Paulo teria contabilizado, em 2012, que a marca Mauricio de Sousa possui mais de 3 mil produtos licenciados, faturando R$ 2,7 bilhões anualmente.

Da Rede Brasil Atual