Suicídio laboral

Leia a carta enviada ao Sindicato por um trabalhador na base, que foi derrotado pelo suicídio laboral e hoje luta para se reerguer

Há um certo tempo li o depoimento de uma cidadã que narrava sua angústia, sua dor e  sofrimento em função do suicídio de seu pai. Relata essa jovem que seu pai há tempos vinha dando sinais de que daria um “basta” à sua vida e gritando por socorro de maneira subjetiva, de um modo que a família não entendia e que, somente após quinze anos decorridos de sua morte, a jovem começava a compreendê-lo.


De maneira similar, porém não tão trágica quanto o suicídio propriamente dito, o suicídio laboral é muito mais comum do que imaginamos.

Entende-se por suicídio laboral, a morte funcional, o desespero, o “jogar tudo para cima” daqueles funcionários que, não suportando mais as pressões e opressões do dia-a-dia nas grandes organizações, decidem por fim em suas carreiras.

Aconteceu comigo

Trabalhei por vinte anos numa empresa multinacional e nos três ou quatro últimos anos que me mantive com o vínculo empregatício, a decadência aumentou no mesmo passo do avançar dos dias.

Não obstante o fato de hoje, século XXI as empresas digladiarem freneticamente em busca de resultados cada vez maiores, onde a moeda tornou-se capital maior que o capital humano, há ainda aqueles cidadãos que, envoltos de um pseudo-poder e numa demonstração patética de supremacia, emperram o curso natural dos processos, pois que, se não demonstram esse pseudo-poder, não conquistam o júbilo de seus egos.

Nesses últimos três ou quatro anos tive a infelicidade de conviver com um energúmeno desses, que além de não cumprimentar seus subordinados, esbarrando com eles pelos corredores com o olhar fixo no chão, cumprimentando apenas seus superiores e pares, tratava-os como excremento social. Rara as vezes em olhava nos olhos dos menos abastados nas nomenclaturas de cargos. Atitude típica dos covardes…

Era comum a gritaria, o berreiro, a humilhação, a exposição à situações ridículas, o nepotismo à vista de todos, os mandos e desmandos, o uso demasiado de verbos imperativos e a cobrança de trabalhos em tempos surreais, na gestão do “poderoso gestor”.

A soma desses ingredientes aliada ao tempo e ao convívio é a receita perfeita para o desgaste emocional, físico e mental dos trabalhadores. A máquina-corpo obtém recursos próprios para suportar a dispepsia desses ingredientes e o mais interessante é a capacidade do corpo em ludibriar nossas fragilidades. Embora convivamos com as dores (de cabeça, estomacais, musculares e, principalmente aquelas dores abstratas que ferem nosso caráter, nosso orgulho e nossa honra) resultantes do dia-a-dia, fruto do trato a que somos submetidos, ainda assim, por responsabilidade ou por medo da perda de nossos empregos, mantemo-nos firmes no cumprimento do dever. Engolimos as humilhações, as ofensas, os xingamentos, as explosões desses energúmenos e, feito cordeiros, continuamos a pastar o nosso solo.

Um dia porém, todas essas manifestações de maus-tratos com o corpo se apresenta de maneira agressiva. A depressão, a angústia e aquela sensação de insanidade começa a nos rondar cada vez mais de perto. Desesperados, tentamos ludibriar o corpo, que por sua vez já se esgotou nas tentativas de ludibriar as doenças e aquela sensação de que somos mesmo um excremento social se torna latente. Abdicamos um pouco da nossa maior opressora – a responsabilidade – e tentamos relaxar. Pensamos em férias, em uns dias de afastamento e aquelas tantas outras soluções paliativas que bem conhecemos.

São os primeiros sinais, os primeiros gritos-calados por socorro. Necessitamos urgente de ajuda! Começamos a nos lamentar pelos cantos, as conversas com os companheiros giram em torno dessas nossas mazelas, começamos a faltar mais ao trabalho em busca de auxílio médico, porém o “mal” continua ativo, operante e mandante. A cada dose de vallium, diempax, somalium, lexotan, triptanol e outros tantos remédios que a maioria dos trabalhadores passou a conhecer (antes tidos apenas como remédios para tratamento de loucos), o nosso humor, a nossa personalidade sofre alterações bruscas. Perdemos um pouco de nós mesmos. Já não nos reconhecemos. Os amigos se afastam e acusam-nos de distantes, afastados, omissos, a família cobra por aquele homem de outrora e que agora vive recostado num canto da sala vendo televisão em seus raros momentos de folga. Um homem transformado apenas num corpo inerte submerso em sua angústia e lutando contra seus próprios demônios. Há ainda a sociedade, que exige padrões de comportamentos adequados, pois o suicida laboral, em seu ápice, vive às margens do social.  A atmosfera carrega lampejos de pensamentos macabros e isso é tão-somente o começo do fim.

Nesse estágio, geralmente ocorre o suicídio laboral. O profissional já não suportando a situação, julgando-a insustentável, cede por vez aos caprichos dos tiranos. Decide por fim à sua carreira profissional, seja ela em que ponto se encontra. Seja o tempo que for. Cinco, dez, quinze, vinte anos, não importa, assim como o suicídio tradicional, o laboral não escolhe idade, classe social, raça, cor, religião.

O suicida laboral, depois de ter demonstrado a todos as suas amarguras e insatisfações, desiste. Torna-se um paranóico, muitas vezes obcecado por receituários médicos a fim de validar seus argumentos e suas dores, pois que suas palavras perderam o crédito. É comum nessa etapa a entrega ao fumo, ao álcool, ás drogas… Decide então, por fim ao seu vínculo empregatício e esse desejo de “morte no trabalho” é tão forte que o suicida consegue vencer todos os seus medos e preocupações. Já não importa a ele se o mundo está em crise, se o seu salário vai ser menos em outra empresa, se não tem escolaridade, se já está com a idade avançada… Seu desejo de morte, de ruptura com os energúmenos-opressores é demasiado forte para um possível arrependimento e por mais contraditório que possa parecer, esse desejo de morte no trabalho é em verdade um desejo de vida.

A única esperança para o suicida laboral é o corte trágico com aqueles que lhe causam feridas, pois vê nessa ruptura um horizonte novo, de paz e longe das tolices do poder ditatorial. O livrar-se desses ditadores é para o suicida, sinônimo de renovação.

A única intenção desse escrito é o alerta aos companheiros que passam por uma situação similar. É importante esclarecer alguns pontos: 1º – o poder é bom e necessário para o equilíbrio e progresso, desde que não haja abuso desse poder. 2º – a pressão é comum nas empresas e de certa forma até nos estimula a alcançar metas e resultados, mas a pressão é totalmente distinta da opressão. Pressão constrói, opressão destrói. 3º – Não tenham medo! Denunciem todo o tipo de abuso de poder e de assédio moral. Não se sujeitem as humilhações e saiam todos os dias de seus postos de trabalho com a cabeça erguida, com dignidade e com a paz interior do dever cumprido. 4º – Filiem-se aos Sindicatos representativos da categoria. Eu sou um suicida laboral e, se fosse sócio da entidade sindical que me representava na época, certo é que eu não teria “exterminado” a minha carreira. O Sindicato é a voz de cada trabalhador no ouvido dos opressores. Insisto, não tenham medo. Se não forem direto, “olho no olho” com os opressores, passem a reclamação ao Sindicato que na certa irá auxiliá-los e vocês não correrão o risco de represálias. O setor de Recursos Humanos, ao menos na empresa em que tive a experiência é defensor único e exclusivo do empregador. Confiem primeiro no Sindicato, depois no Recursos Humanos, se não houver opção.  5º gravem em suas memórias uma das últimas frases do suicida laboral: “Eu prefiro morrer de fome em casa, do que morrer enfartado nessa empresa”.

Boa Sorte a todos!