“Toda eleição, no fundo, é também sobre valores”, analisa Celso Amorim

Com o nome do próximo presidente dos EUA prestes a ser divulgado, o diplomata e ex-ministro Celso Amorim analisa impactos da eleição norte-americana no Brasil e no mundo

Foto: Adonis Guerra/SMABC

“Eu não me arrisco a fazer uma previsão, mas a minha expectativa é que o Biden possa ganhar”.

Tribuna Metalúrgica – Há uma expectativa grande pela eleição de Joe Biden. Como você enxerga isso?

Celso Amorim – Acho muito arriscado fazer previsão, o sistema eleitoral americano é muito complexo, então é muito difícil fazer um panorama, mas minha expectativa, que é a da maioria dos analistas, é que o Biden vença. Embora eu tenha ouvido e esteja de acordo em partes com algumas novas cautelas. Há vários fatores que poderiam levar nesse sentido, primeiro que normalmente o voto conservador, sobretudo o conservador extremado, que é o caso do Trump, é um voto meio envergonhado, então as pesquisas não dão conta plenamente desse voto. O outro é o próprio colégio eleitoral, sabemos que a votação nos EUA é indireta e não é proporcional. Isso tudo torna a previsão muito difícil. Mas as análises, ainda assim, acham que a maior probabilidade é do Biden ganhar.

TM – Essa expectativa de derrota do Trump ocorre muito em função da condução negacionista do governo dele durante a pandemia de coronavírus, já que ele tinha uma boa aprovação até o início deste ano, certo?

Celso Amorim – Sim, a economia estava crescendo, o desemprego estava diminuindo, apesar de as pessoas não simpatizarem com as ideias, a economia pesa muito. Eu não me arrisco a fazer uma previsão, mas a minha expectativa é que o Biden possa ganhar.

TM – E como esse resultado influenciará as questões políticas e ideológicas nos outros países?

Celso Amorim – Obviamente toda eleição nos EUA tem implicações no mundo inteiro, mas nesse caso, ela tem implicações de várias naturezas, geopolíticas, de cultura e quase que de ética filosófica, digamos assim, porque toda eleição, no fundo, é também sobre valores. E essa também, na medida em que você está vendo quem é defensor da democracia, da tolerância, da solidariedade, dos direitos humanos e no outro lado está o oposto disso. Então é uma eleição que vai ter uma influência muito grande no mundo inteiro e muito especialmente na América Latina.

TM – O mundo vinha numa escalada de ascensão da extrema direita em muitos países, como uma possível derrota de Donald Trump pode interferir nisso, especialmente no Brasil?

Celso Amorim – Não quero ser ingênuo e cair na ideia de que vai ser tudo uma maravilha, mas acho que vai haver uma retração da extrema direita e isso vai se refletir em diversos países, inclusive aqui no Brasil. Talvez até, sobretudo no Brasil, que tem a liderança mais parecida com a do Trump. A visão e a forma como Bolsonaro se comporta beira o totalitarismo, a monarquia absoluta. Também há questões concretas políticas como as mudanças climáticas, a Amazônia, questões relativas a direitos humanos que terão impacto aqui.

TM – Então Bolsonaro perde força com uma derrota de Trump?

Celso Amorim – Creio que sim. Bolsonaro tem duas opções, ou se adaptar ao Biden, para tentar evitar uma briga frontal e com isso ele perderia um pouco do prestígio e da força com seus apoiadores mais tradicionais. Ou ele vai tentar fazer uma jogada de falsa soberania, tudo é fake no mundo de hoje, até a soberania pode ser fake, que é brigar com o Biden a pretexto de dizer que não admite a eleição dele, para tentar reconsolidar o apoio das Forças Armadas e de outros setores que o apoiam de maneira mais ideológica. Mas isso tem um risco para ele muito grande, em minha opinião, porque se há uma coisa que a elite brasileira não gosta é de brigar com os EUA. Acho que de uma forma ou de outra debilita o governo Bolsonaro, seja por fazer opção por tentativa de aproximação e diminuição das diferenças e perder o apoio dos fanáticos e terraplanistas, ou tentar contemporizar e não vai obter apoio mesmo assim.

“É uma eleição que vai ter influência muito grande no mundo inteiro, especialmente na América Latina”.

TM – Inspirado pelo governo americano, Bolsonaro atacou a China, agora como ficam essas relações comerciais?

Celso Amorim – A política externa brasileira tem se caracterizado por uma submissão cega aos EUA. É uma cruzada ideológica contra o que consideram grande ameaça do comunismo, repousada principalmente na China, é coisa que não tem dose nenhuma de pragmatismo. Piñera (presidente do Chile) pode não gostar, mas não fica falando mal. Não é normal ter uma atitude assim com seu principal parceiro comercial, responsável por 70% do superávit comercial brasileiro. As exportações brasileiras para a China são maiores do que para EUA e União Europeia somadas. É uma coisa alucinada. Agora poderia estar esperando por uma recompensa que nunca veio, não teve nenhum benefício para o Brasil. Pelo contrário, foi penalizado pela diminuição da conta do aço, não entrou para OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) como desejava, não houve revisão fitossanitária das carnes. O Brasil fez mais concessões, isentou de taxas produtos que competem com os brasileiros, nunca vi isso na história do Brasil. No mundo, é mais complexo. A influência em princípio é positiva. A rivalidade com a China não vai desaparecer, mas haverá outro modo de lidar, penso eu. Menos confrontacionista, menos provocações. Isso também diminui risco de conflito armado que possa escapar do controle com risco de uma guerra nuclear.

TM – Tem se falado muito sobre o fato de Donald Trump querer contestar o resultado das eleições caso Joe Biden seja eleito.  Como fica a democracia neste caso?

Celso Amorim – Agora o Trump modulou a fala, mas é um risco muito grande, uma coisa que nunca vi. Morei duas vezes nos EUA, trabalhei junto a OEA (Organização dos Estados Americanos) e fui embaixador na ONU, nunca vi essa ameaça prévia explícita. Se tivesse acontecido com a Bolívia, no dia seguinte teria resolução da OEA, sanções etc. É parecido com o que Bolsonaro fez aqui em 2018. Apesar de ter ganhado, mas antes já dizia que não confiava na urna eletrônica tentando influenciar para ganhar e tentando também já negar a hipótese de derrota.

TM – A morte de George Floyd, homem negro que morreu sufocado em uma abordagem policial, e os protestos que se seguiram também terão grande impacto nos resultados, certo?

Celso Amorim – Sim, a comunidade negra votava relativamente pouco nos EUA porque não tinha estímulo para votar. Isso pode influenciar positivamente para a vitória democrata.

TM – Muito se fala de Trump, mas qual o perfil de Biden?

Celso Amorim – O Biden passa a imagem do homem comum americano, embora seja uma pessoa rica, atrai certa simpatia. E tem a sua vice, Kamala Harris, mulher de origem negra e indiana, o que também é novidade nos EUA. Isso vai ter influência, hoje em dia o mundo está muito aproximado. As repressões aos quilombolas e LGBT vão chegar nos EUA e nos deputados, que terão influência mais direta sobre o governo.