“Todas as lutas políticas são causadas pela revolta contra alguma forma de humilhação”
A análise é do sociólogo Jessé Souza que vem ao Sindicato no próximo dia 13 divulgar o seu novo livro O pobre de direita – a vingança dos bastardos. Em entrevista exclusiva, ele dá detalhes sobre sua pesquisa e os motivos que levaram à ascensão da extrema direita no país
O sociólogo Jessé Souza vem ao Sindicato na próxima quarta-feira, 13, às 9h, para participar da reunião da Direção Plena e divulgar o seu novo livro “O pobre de direita – a vingança dos bastardos” (Ed. Civilização Brasileira). A obra faz um raio-x da ascensão da extrema direita no Brasil sob o ponto de vista regional, religioso e principalmente racial. Em entrevista à Tribuna Metalúrgica, Jessé, um dos destaques da opinião pública no país, contou detalhes do que descobriu durante o processo de pesquisa e analisou alguns pontos da esquerda que precisam ser revistos.
Tribuna Metalúrgica – No livro ‘A elite do atraso’, você desmascara a elite brasileira, cita como o ódio ao pobre contribuiu para a persistência das desigualdades do Brasil. Neste novo livro você retrata a outra parcela da população. Como surge esse interesse?
Jessé Souza – Para entender a acessão da extrema-direita no nosso país. Saber porquê o pobre, que antes votava com o Lula, passou a votar com o Bolsonaro. Essa é a questão importante, todas as outras são secundárias. E as explicações não me satisfaziam, dizer que é minion, gado, é burro e tal, isso é uma bobagem. Todo mundo é inteligente. O que acontece que obnubila a inteligência? Essa é a questão. A outra questão mais acadêmica dizia que esse cara tinha uma cabeça conservadora, que era religioso e tal. Era como se ele tivesse nascido assim. Mas a questão principal não é essa. Por que ele vai escolher essa orientação religiosa conservadora e repressora dentre tantas possíveis? A questão principal para mim é sempre a da humilhação. Todas as lutas políticas são causadas pela revolta contra alguma forma de humilhação, embora poucas pessoas percebam isso. As pessoas acham que os interesses econômicos mandam no mundo, o que é uma bobagem monumental. Me pareceu importante perceber como se dá essa humilhação, por quê, e de que forma ela é usada, de modo insidioso, pela extrema direita, pela pregação evangélica, para manipular a vulnerabilidade do pobre.
TM – Então é essa humilhação que resulta na ‘vingança dos bastardos’, o subtítulo do livro?
Jessé Souza – Exatamente isso. É a vingança de quem não teve acesso às benesses do mundo moderno, que é um destino de 80% da população. Não tem acesso à cultura, à educação e à saúde de qualidade. Então ele é pobre e humilhado. A única saída para isso era se a origem dessa humilhação fosse explicitada, porque ela nunca é. Ou seja, mostrar para esse cara o porquê ele passou a ganhar menos depois do golpe. As pessoas começaram a fazer coisas que elas não podiam fazer antes, aí de uma hora para outra isso tudo acaba e toda imprensa diz que foi culpa do PT, que foi a corrupção do PT. O que é uma mentira. No fundo isso aconteceu porque é o projeto de uma elite que odeia o próprio povo, humilha o próprio povo. Mas aí você não disse para esse cara que o inimigo dele estava na Faria Lima. E como esse cara não sabe quem o deixou pobre, ele tem raiva. Por trás disso tudo, desse ódio, dessa distinção social conseguida pelo branco pobre, pelo negro evangélico, é, em última análise, contra o pobre excluído e marginalizado, que é 80% preto.
TM – Você faz esse recorte racial bastante explícito no livro. O pobre negro também é mais voltado para as pautas conservadoras, é isso? Por que?
Jessé Souza – Claro, claro. Porque desse modo ele consegue embranquecer. E embranquecer no Brasil nunca foi tornar a pele branca. Foi optar e adotar, como se fossem seus, os valores dos opressores, dos seus algozes, brancos e ricos. O negro tem uma posição muito pior do que a do branco, mesmo o branco pobre, porque o branco pobre sabe que ele é gente. O contexto social do nosso país é para mostrar ao negro que ele não é bem-vindo e que ele não é gente. Tanto que a polícia pode matar que ninguém se incomoda. Então você cria ali uma classe de sub-humanidade.
TM – E qual é a parcela da religião nesse processo todo?
Jessé Souza – Tem uma grande influência. Entre os negros, mais de 90%. Entre os brancos, mesmo no Sul, também é uma porcentagem muito significativa. Tem a ver com o que as igrejas evangélicas fazem, elas pegam esse cara humilhado, acolhem e dizem a ele que Jesus está com ele, por exemplo. Quando você diz a esse cara que ele vale alguma coisa, é exatamente o que ele sempre quis ouvir. É claro que essas igrejas fazem isso para depois manipular, econômica e politicamente. Agora, é preciso compreender o que é que faz as pessoas procurarem essas igrejas, e é exatamente a humilhação.
TM – Sobre o processo de pesquisa para o livro, você afirmou recentemente que “Sentia um desespero quando saía das entrevistas. Isso aqui vai virar o Irã!”. Qual a razão desse desespero e temor?
Jessé Souza – O que eu quis dizer foi a questão do fundamentalismo, e a do mando político pela religião. Perguntava para essas pessoas o que elas achavam, por exemplo, da mistura religião e política. Todo mundo era contra. Aí eu perguntava ‘como você pensa que a política pode ser?’ Aí vinha toda a questão religiosa, família, kit gay. Ou seja, as pessoas não têm a menor ideia do que é um Estado laico, do que é a própria separação entre política e religião. Não existe isso, é uma confusão muito grande. E aí você tem essas pessoas que vão, por se sentirem um pouquinho menos humilhadas, se adequar a esse discurso.
TM – A esquerda tem um grande desafio pela frente que são as eleições de 2026. Muito se discute como ela pode se reinventar. O que precisa ser feito urgentemente?
Jessé Souza – Toda a campanha de 2022 foi a figura de Lula. Graças a Deus temos o Lula, senão estaríamos num país fascista. Mas era tudo na pessoa do Lula, é o carisma da pessoa Lula. Não é um discurso alternativo. E o que é mais desesperador para mim é que parece até que ninguém compreende a importância disso. Ainda estão naquele negócio de melhorar a vida das pessoas, mas isso não funciona. É o caminho para o fracasso. E aí você não tem ninguém com a estatura de estadista que possa construir uma política de comunicação e de embate de ideias.
TM – A esquerda levanta a pauta da defesa do trabalhador celetista. Mas há hoje uma demanda muito maior de debate sobre empreendedorismo. Como mudar o discurso sem perder a base?
Jessé Souza – Esse cara quer ser empreendedor, e é sempre possível, óbvio com inteligência, você virar o jogo. Você pode dizer para esse cara: ‘você quer empreender? Ótimo, não tenho nada contra isso, agora o dinheiro precisa chegar até você’. Num país como a Alemanha, os empreendedores, médios e pequenos, recebem financiamento à taxa próxima de zero. Aqui não, aqui o cara põe juros de dois dígitos em cima de você. Como você vai empreender se o dinheiro fica todo retido na Faria Lima? Qual é a dificuldade de você explicar para as pessoas que diabo está acontecendo? Quem é que fica com o dinheiro? Mas você tem que desenvolver e dar as fórmulas de criticar essa realidade.
TM – Você vem ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC para conversar com a categoria e lançar o seu livro. Como pretende, neste que é historicamente um espaço de esquerda, colocar o dedo na ferida e apontar temas sensíveis que precisam ser revistos?
Jessé Souza – Se não for para causar e por uma boa briga, nem saio da cama. A minha origem social é das classes populares. Eu consegui, com um pouco de sorte e muito trabalho, estudar e fazer as coisas que eu queria fazer. E eu acho que a minha obrigação é explicitar como funciona essa opressão social, foi sempre o que me motivou na vida. Então, fazer isso em São Bernardo será um prazer.