Torero|A primeira pedra
"A TV tá transmitindo." "Vamos gritar: 'Justiça! Justiça!'"
Por José Roberto Torero
Delegacia do Carandiru, 18 de abril, 11h30
A multidão atira objetos e grita: “Assassinos! Assassinos! Assassinos!”
– Pronto, entraram. Acertou?
– Não. Errei por pouco. E você?
– Acertei no escudo da polícia.
– Legal!
– Será que demoram muito para sair?
– Depende. Eu me lembro que, no primeiro depoimento, o jornalista que matou a namorada saiu logo.
– Foi, sim. Mas ele era réu confesso. É bem diferente.
– É, eu sei. Mas a moça que armou com o namorado e o cunhado para matar os próprios pais também não demorou muito.
– Ah, então é de lá que eu te conheço! Bem que eu sabia que você não me era estranho!
– Também estava te achando familiar. Mas eu pensava que era da Escola de Base.
– Não, cara! Não deu pra fugir do trabalho naquele dia.
– Pô, ruim, hein? Perdeu.
– Mas desta vez descolei um atestado médico falso.
– Boa!
Luzes se acendem e nova gritaria: “Justiça! Justiça! Justiça!”
– Ué, já estão saindo?
– Não. É que a TV está transmitindo. Olha a luz acesa lá.
– Opa! Se estão gravando, vamos gritar. Justiça! Justiça! Jus…
– Desligaram. Só estavam testando.
– Sujeitos de sorte, esses repórteres. Pegam sempre os melhores lugares.
– Pois é. Deixa eu ver seu cartaz? “Cadeia neles!” Legal. Olha o meu.
– “Filma eu, Galvão”
– Não! Do outro lado. É que aproveitei a cartolina.
– “Fora, monstros!” Beleza!
Delegacia do Carandiru, dia 18, 14h
– Você já foi ver o edifício London?
– Não.
– Meu cunhado está com uma van saindo da estação do Tucuruvi para lá.
– É?
– É. Ida e volta, dois paus. Tá ganhando a maior nota.
– Grande sacada!
Delegacia do Carandiru, dia 19,
2 da manhã
– Você viu na TV o… (bocejo) Pessoal da perícia com a boneca no gramado?
– Umas 25 vezes.
– E o buraco na tela?
– Umas 30.
– Coisa horrível, né? Meu filho nem tem dormido direito, coitado.
– Nem o meu.
– O pessoal da televisão devia respeitar as crianças.
– É. Um absurdo o que eles mostram.
– Um absurdo!
– Eu até vi quando interromperam um programa infantil para transmitir daqui, ao vivo.
– Falando nisso, será que filmaram a gente?
– Sei lá. Mas por via das dúvidas deixei o videocassete programado para gravar o Jornal Nacional.
– Gênio!
Delegacia do Carandiru, dia 19, 4h
– Já foi quase todo mundo embora.
– Tem mais um cara chegando ali.
– Sujeito estranho.
– Com aquele cabelo e aquela roupa, deve ser hippie.
– Xi, está vindo pra cá.
– Vai ver quer guardar lugar pra amanhã.
– Boa noite, gente boa. Quer uma pedra?
– Pedra? Em verdade eu vos digo: quem de vós estiver sem pecado que atire a primeira pedra.
– “Vós”? Eu hein, sujeito esquisito.
– Em verdade eu vos digo…
– Shhh, peraí, tem gente saindo.
– Vai, manda ver!
– Assassinos! Assassinos! Assassinos!
– Foram embora. Acertou?
– Não.
– Nem eu. Droga!
– O sujeito desconcentrou a gente.
– Aparece cada maluco por aqui…