Uma tribo na rota da fibra óptica

Infraestrutura: Para passar por reserva, empresa de telefonia terá de fornecer equipamentos e serviços a índios

Na trilha que leva o Brasil para a inclusão digital, o trajeto desenhado para a expansão das redes de fibra óptica passa pela necessidade de equilibrar o interesse social às motivações políticas e empresariais. Um capítulo atual desse percurso encarado pela operadora de telecomunicações Oi na região Norte do país, no entanto, é o exemplo claro de que em algumas situações esse roteiro exige habilidade extra de diplomacia e capacidade de negociação.

A Oi precisa instalar uma rede de fibra óptica entre as capitais de Roraima e Amazonas. O projeto, que vai interligar as cidades de Boa Vista (RR) e Manaus (AM), foi uma das exigências feitas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) em dezembro de 2008, para autorizar a companhia a adquirir a Brasil Telecom. O cabo de fibra parte de um tronco nos Estados Unidos, entra no mar, cruza o Caribe e corta a Venezuela até chegar ao Brasil. O que acontece é que há uma reserva indígena no meio do caminho.

A construção da rede deve ser feita ao longo da rodovia BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, mas dos 758 quilômetros de estrada que separam as duas capitais, 125 estão dentro da reserva dos índios Waimiri Atroari. Neste trecho, quem manda são os índios.   

A parte da estrada que corta a reserva é controlada pelos Waimiri Atroari. Diariamente, às 6h da manhã, os índios liberam o acesso à estrada e às 18h eles fecham a BR. “Eles decidiram parar com o tráfego noturno porque os carros estavam matando muitos animais da região”, diz Cristiano Oliveira, gerente de desenvolvimento e diversidade cultural da Secretaria dos Povos Indígenas do Amazonas.

O resultado é que a dificuldade em negociar com os índios atrasou os planos da Oi. Durante encontro com representantes da operadora realizado em abril, o governador do Amazonas, Omar Aziz (PMN), lembrou que a previsão inicial era ter a obra concluída em março. Na ocasião, o gerente de operação e implantação de rede da Oi, Afonso Fernandes de Vasconcelos Neto, afirmou que 47% do total da obra estava pronta e que sua previsão era ativar o sinal da rede neste mês. “Até agora, a obra nem chegou até a reserva”, diz Marcelo Cavalcante, coordenador do Programa Waimiri Atroari.

Procurada pelo Valor, a Oi informou, por meio de nota, que “não considera adequado divulgar informações sobre as negociações [com os índios].” Segundo a operadora, sua equipe “trabalha para concluir no menor tempo possível a ampliação da rede de fibra óptica até Manaus” e acrescenta que está dentro do prazo estabelecido pela Anatel para o projeto. De acordo com a Anatel, a empresa tem até dezembro para concluir a instalação da rede.

Para o governador do Amazonas, os contratempos na obra têm razões bem claras. “A previsão inicial era que em março deste ano nós teríamos a rede de fibra óptica já instalada e funcionando na cidade de Manaus”, disse Omar Aziz, conforme ata de reunião com a Secretaria de Planejamento do Amazonas, com participação da Oi. “Vocês já estão há um tempo bastante razoável fazendo isso [a obra] e não conseguiram ainda negociar com os Waimiri Atroari. Eu lhes aconselho a negociar diretamente com as lideranças dos Waimiri Atroaris e até nem esperar pela Funai, senão [esse projeto] não vai sair”, acrescentou Aziz.

Durante o encontro, o governador lembrou uma situação anterior vivida com os Waimiri Atroari, para asfaltar a BR-174. “A negociação foi feita diretamente com eles e eu estive na tribo naquela época. Eles não aceitam imposição de ninguém, tanto é que chega um certo horário eles fecham [o acesso à estrada] e passa se eles quiserem.”

Embora a Oi não tenha revelado detalhes sobre a negociação com os índios, a secretária do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SDS) do Amazonas, Nádia Ferreira, afirma que operadora e tribo já chegaram a um acordo, após intermediação da SDS. Os índios fizeram uma lista de exigências para permitir que a obra avance. Na relação de pedidos está a instalação de telefones, câmeras e acesso à internet em quatro postos de fiscalização ao longo da estrada. A relação inclui a distribuição de aparelhos de comunicação via rádio entre as 22 aldeias da tribo, celulares com tarifação livre e servidores (computadores de grande porte) para gerenciar dados entre os postos de vigilância.

“No início das negociações, a empresa resistiu em atender alguns dos pedidos, como as câmeras e os aparelhos de rádio, já que ela não trabalha diretamente com isso”, diz Nádia. “Mas depois mostramos para a operadora que a proposta era bem razoável e ela concordou em cumprir com as exigências.”

Segundo Marcelo Cavalcante, do Programa Waimiri Atroari, será feita uma análise sobre o local para instalação dos postos. “Se tudo der certo, acho que serão instalados em cerca de dois meses”, afirma.

O acordo pode ter saído bem barato para a Oi. “Só para fazer a BR-364, que liga Boca do Acre a Rio Branco, tivemos que pagar para as tribos indígenas em torno de R$ 15 milhões para que eles pudessem autorizar a gente a passar por aquele trecho”, disse Aziz no documento.

Serviços são precários na região Norte
A construção de uma rede de fibra óptica no Norte do país deve ajudar a minimizar as dificuldades causadas pela precária situação do acesso à internet nos Estados da região. Os serviços, invariavelmente, são caros, instáveis e de velocidade limitada.

Atualmente, o Amazonas está conectado à internet por meio de uma única fibra óptica, além de comunicação via satélite. Até dezembro, o Estado passará a ter uma segunda linha de fibra, com o término das obras da Oi. Para 2011, há a expectativa de que o Estado ganhe mais uma linha de conexão, por meio do projeto de interligação de Tucuruí, Macapá e Manaus. No caso da Oi, o investimento total envolvido na obra é de aproximadamente R$ 100 milhões, enquanto os investimentos no sistema do Linhão de Tucuruí são estimados em R$ 27 milhões. 

Em abril, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) demonstrou que o Brasil está muito aquém dos países desenvolvidos quando se trata de acesso à banda larga. O relatório do Ipea apontou que apenas 12 milhões de domicílios (21% da população brasileira) têm acesso à internet rápida no país. “O acesso é praticamente inexistente no Amapá e Roraima”, indica o estudo. Entre os sete Estados da região, Rondônia é o que conta com maior quantidade de lares conectados (16,1%), seguido pelo Acre (15%), Tocantins (11,1%) e Amazonas (8%). No Pará, só 7,7% das casas têm acesso. No Amapá, o índice é de 0,6%; em Roraima, 0,3%. Para se ter uma ideia da discrepância, no Distrito Federal a taxa de acesso é de 51%. Nos Estados do Sul e Sudeste, a penetração varia entre 20% e 30%.

O Ipea também mediu o gasto médio com banda larga pelo cidadão. Em 2009, o gasto com o acesso à internet equivalia, proporcionalmente, a 4,6% da renda mensal per capita, enquanto na Rússia esse índice era de menos da metade: 1,7%. Nos países desenvolvidos, essa média cai para 0,5%, quase dez vezes menor que no Brasil, informa o Ipea.

A velocidade de acesso também é outro agravante. Em 54% dos domicílios com banda larga no país, a velocidade é predominantemente menor ou igual a 1 Mbps. Em muitos países, essa velocidade nem chega a ser considerada como acesso de banda larga.

O estudo chama a atenção ainda para o fato de que apesar de a economia brasileira situar-se entre as dez maiores do mundo, em termos de desempenho das telecomunicações, a União Internacional das Telecomunicações (UIT), órgão da ONU para o setor, classificou o Brasil em 60° lugar em 2009.

Entre os Suruí, internet já faz parte do dia a dia
A mesma internet que hoje testa os limites da “aldeia global”, expressão criada pelo sociólogo Marshall McLuhan para se referir às mudanças sociais causadas pelas mídias eletrônicas, avança agora sobre a “aldeia local”.

Os Waimiri Atroari não foram os primeiros e tampouco serão os últimos entre os povos indígenas a enxergar na internet um forte aliado para garantir seus direitos, em vez de uma ameaça à sua organização e cultura.

Entre os municípios de Cacoal (RO) e Aripuanã (MT), a tribo dos índios Suruí (que significa “gente de verdade”) convive diariamente com o acesso à internet. Entre as 25 aldeias, três delas estão equipadas com computador. Parte da população dos 1.350 índios Suruí também usa telefone celular para se comunicar, diz Almir Suruí, líder da tribo.

“Todo povo e todo país tem que melhorar e se desenvolver. Nossa missão com a tecnologia é levar para o mundo o valor da floresta, para que todos a conheçam e a respeitem”, diz Almir.
O acesso à tecnologia pelo povo Suruí teve início há pouco mais de dois anos, quando Almir foi até os Estados Unidos para negociar com executivos do Google um sistema que conectasse sua tribo. O projeto deu certo. Em 2008, uma equipe internacional do Google liderada por Rebecca Moore, cientista responsável por projetos ambientais da companhia, passou oito dias na tribo Suruí, no convívio com os índios. A partir da visita, a companhia americana lançou o Google Earth Outreach, recurso pelo qual organizações não governamentais têm acesso a mapas digitais e mecanismos para difundir e proteger projetos socioambientais.

Nas aldeias Suruí, diz Almir, a excitação dos índios para usar a internet é grande. O recurso, diz ele, é novidade para seu povo, mas é preciso ter acesso controlado. “É importante que a gente se preocupe com a questão cultural. Há critérios para uso do computador”, diz Almir. “Ninguém pode usar para fazer bagunça, é uma ferramenta de comunicação.”

Hoje, os Suruí têm computadores que foram doados pelo Google. O acesso à internet é financiado por um programa social apoiado pelo Ministério da Cultura.

Waimiri Atroari quase foram extintos
Localizada entre o Norte do Amazonas e o Sul de Roraima, a tribo dos Waimiri Atroari já viveu episódios que quase levaram seu povo à extinção. Historicamente reconhecidos como integrantes de uma tribo combativa e de difícil acesso, os Waimiri tiveram suas vidas transformadas entre os anos de 1969 e 1977, período da construção da rodovia BR-174. Para tocar a obra e garantir a segurança dos funcionários, o governo achou que era necessário contar com o apoio do Exército. O resultado prático foi uma série de episódios de violência e transmissão de doenças que culminaram na morte de centenas de pessoas. Calcula-se que antes da construção da BR-174, a população dos Waimiri Atroari atingia 1,5 mil índios. Em 1987, o grupo estava reduzido a 374 pessoas.

Os conflitos continuaram nos anos seguintes. Na década de 1990, a reserva teve sua área reduzida em um terço para a exploração mineral. O entendimento entre os índios e os homens brancos, no entanto, cresceu. Com a construção de outra obra na região, dessa vez a usina hidrelétrica de Balbina pela Eletronorte – que represaria o rio Uatumã e inundaria 30 mil hectares da reserva -, os Waimiri firmaram um convênio com a Eletronorte. Criou-se o Programa Waimiri Atroari, projeto de 25 anos que incluiu a construção de postos de apoio da Funai para assistência aos índios. O programa prevê apoio à saúde da população, com médicos e agentes de saúde. Hoje, os Waimiri somam cerca de 1,3 mil habitantes em 22 aldeias.

“Dessa vez, com a Oi, não houve problemas de negociação”, afirma o coordenador do Programa Waimiri Atroari, Marcelo Cavalcante. “Nós passamos a permitir que as ações deles avançassem assim que foram explicar para os índios o que era essa obra e como ela seria executada.”

Do Valor Econômico (André Borges)