Viagem: O sertão além do tempo

A região do Seridó, no Rio Grande do Norte, guarda mistérios e surpresas da Caatinga. E prova que o sertão também é terra de encantos, hoje ou há milhares de anos

Texto e fotos de João Correia Filho


É preciso baixar o corpo, esquivar-se sob uma fenda e
adentrar o oco de uma rocha côncava, onde cabem três ou quatro pessoas.
Os olhos demoram um tanto a se acostumar. Aos poucos as paredes de
pedra vão revelando desenhos em tom avermelhado. Em instantes, uma
verdadeira festa primitiva – homens com os braços levantados parecem
dançar de um lado a outro, aves ensaiam o vôo e famílias se reúnem em
torno de uma fogueira. Os desenhos, localizados nos arredores da cidade
de Cerro Corá, interior do Rio Grande do Norte, são pinturas feitas há
cerca de 9 mil anos, quando o homem primitivo já habitava a região hoje
conhecida como Seridó. Além de Cerro Corá, a região inclui os
municípios de Acari, Currais Novos, Caicó, Jardim do Seridó, Parelhas e
Carnaúba dos Dantas, que fazem parte de um grande roteiro pela
Pré-História.
Carnaúba dos Dantas, a 219 quilômetros de Natal,
possui mais de 60 sítios arqueológicos. A quantidade e a qualidade dos
desenhos impressionam visitantes e pesquisadores do mundo todo. Um dos
sítios mais visitados é o Xique-Xique I, localizado nas encostas de uma
pequena serra, onde o que se vê são homens caçando, exibindo lanças e
flechas, um casal que espanta pássaros (ou quem sabe os encurrala
tentando garantir o jantar), crianças sobre uma árvore e mais uma
dezena de cenas com grande precisão e expressividade. São centenas de
figuras que variam entre 5 e 15 cm, a maioria feita com pigmentos em
vermelho, retirados do óxido de ferro. O Xique-Xique I proporciona
também ótima visão de todo o vale, onde nossos artistas se protegiam de
animais e de tribos inimigas.

A
Talhada do Gavião é outro grande abrigo onde foram deixadas mais
pinturas, dessa vez de artista mais detalhista, que trabalha com
figuras geométricas minuciosas e utiliza cores além do vermelho para
cobrir quase toda a superfície de pedra. Em meio ao grande mosaico
multicolorido, além de algumas cenas envolvendo homens e animais,
destacam-se desenhos de pirogas, barcos rudimentares feitos de um único
tronco. Para alguns pesquisadores, tais símbolos poderiam indicar que
onde hoje prevalece a caatinga pode ter havido um ecossistema bastante
diferente, com rios navegáveis e clima mais úmido.

Na
cidade de Parelhas, os primeiros habitantes também demonstram saber
escolher o lugar para morar e deixar suas marcas. No sítio arqueológico
do Mirador, como o nome insinua, tem-se uma visão geral de toda a
planície que hoje é o Açude Boqueirão, resultado do represamento do Rio
Seridó. As pinturas estão localizadas no alto do morro, num paredão
inclinado de mais de 100 metros que as protegeu da chuva e do sol. São
vários blocos de desenhos, com temas que variam: bandos de aves (muito
parecidas com emas, comuns na região), caçadores que seguram tacapes e
flechas. Os traços são perfeitos.

O tempo parou
O sertanejo típico convive no Seridó com a fauna e a flora intocadas

 
Não muito longe dali, em Caicó, uma das maiores
cidades do Seridó, chega-se à Gruta da Caridade, onde são encontradas
pinturas com outras características, as itacoatiaras (pedra riscada).
Aí os grafismos, em baixo relevo, são considerados pinturas mais
recentes, em torno de 2 mil anos. No interior da gruta há um pequeno
riacho que forma quedas d’água. Não é à toa que o local tem se tornado
ponto de visitação constante de aventureiros e espeleólogos.

Fonte de alimento

A busca pela água forjou uma outra característica do Seridó: a presença
de açudes, construídos, a maioria, em meados do século passado. Hoje,
quando se olha para um mapa hidrográfico do sul do estado, o que se tem