Vítimas da ditadura pedem que governo entre na luta para punir torturadores
A audiência ocorrida esta semana para ouvir testemunhas em ação movida contra o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra voltou a levantar pedidos para que o governo Dilma Rousseff assuma uma posição a favor da punição de agentes da ditadura (1964-85). Apesar de o Executivo mostrar-se favorável à instalação da Comissão de Verdade e da localização de corpos de desaparecidos políticos, parentes de vítimas esperam bem mais.
A princípio, o Supremo Tribunal Federal (STF) afastou a possibilidade de condenação penal em 2009, quando pontuou que a Lei de Anistia de 1979 havia sido fruto de amplo acordo da sociedade e, portanto, abarcava também as violações de direitos humano cometidas por agentes a serviço do Estado. “A decisão do STF tornou inimputável qualquer um deles”, analisa Nilmário Miranda, presidente da Fundação Perseu Abramo e ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. “Por enquanto, a realidade é essa. Infelizmente. Mas esta não é a última página. Está longe de ser a última página”, defende.
Por isso, a família de Luiz Eduardo da Rocha Merlino ingressou com processo contra Ustra no âmbito cível, visando ao pagamento de danos morais – que seria revertido a organizações não governamentais em caso de vitória – e principalmente à declaração de que o militar foi o responsável por tortura e morte do militante.
“As experiências de outros países nos mostram que quando há uma condenação moral e se tem uma Comissão da Verdade, existe a possibilidade de que se faça justiça. Não quer dizer que será assim, mas pode ser”, analisa o pesquisador José Luiz del Roio, que migrou para o exílio na década de 1970.
Falta uma definição interna sobre a real validade da decisão do STF. A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil em 2010 no caso da Guerrilha do Araguaia e indicou que a anistia não deveria servir de pretexto para deixar de punir torturadores. O entendimento da entidade, que integra a Organização dos Estados Americanos (OEA), é o de que violações aos direitos humanos são crimes imprescritíveis, uma situação reforçada pelo fato de os corpos de muitas vítimas dos militares seguirem desaparecidos – como não há prova da morte, significa que continuam sequestrados pelas Forças Armadas.
No papel, o Direito Internacional prevalece sobre a legislação brasileira, ou seja, há espaço para solicitar a condenação penal de agentes do regime autoritário. O STF, no entanto, resiste a rever sua posição para que fique em sintonia com a jurisdição externa. Titular da Secretaria de Direitos Humanos durante parte do governo Lula, o ex-ministro Paulo Vannuchi tem ressaltado que os ministros da corte máxima podem optar entre admitir a mudança agora ou mais tarde, não havendo possibilidade de ignorar a decisão da OEA. “A questão da impunidade é inegociável em uma nação democrática. O que está em discussão e pode ser negociado é o tipo de punição”, pondera. Ele evita tecer comentários sobre o governo Dilma, e admite que uma condenação de Ustra no âmbito cível já seria uma quebra do ciclo de impunidade.
O Palácio do Planalto fechou questão em torno do assunto. Entende que cabe ao Executivo implementar apenas parte das ações previstas na condenação da Corte Interamericana, em especial as relativas à busca de corpos, à criação da Comissão da Verdade e à formação dos novos militares em questões relativas a direitos humanos.
Punir penalmente torturadores é uma questão que, na visão do atual governo, cabe exclusivamente ao Judiciário. “Achava que a Presidência da República deveria se pronunciar mais enfaticamente. No entanto, estamos diante de um governo que, todos sabemos, tem um arco de alianças amplo demais. Não o tivesse, o doutor Nelson Jobim não seria ministro da Defesa”, cutuca o escritor Alípio Freire.
Em 2008, a família Teles obteve vitória em uma ação no Judiciário na qual o Estado teve de reconhecer o papel de torturador de Ustra. O coronel confirma haver comandado entre 1970 e 1974 o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), instrumento de repressão instalado em São Paulo e pelo qual grupos de direitos humanos calculam haver passado 700 militantes, com 55 mortes confirmadas.
Criméia de Almeida, uma das autoras da ação que resultou na primeira condenação do coronel, entende que é preciso dar passos adiante levando o militar à prisão. Criméia foi levada ao DOI-Codi em 1972, grávida de sete meses, e torturada por Ustra e seus comandados. Agora, pede que o governo assuma uma posição clara de apoio à condenação. Em primeiro lugar, considera necessário abrir todos os arquivos para que se possa investigar de fato os crimes.
Depois, pensa que se precisa criar uma Comissão da Verdade maior que a prevista atualmente, com mais tempo para apurações e abarcando apenas as violações ocorridas entre 1964 e 1985 – por pressão das Forças Armadas, o projeto atual prevê investigar o período de quase quatro décadas. “Dizer que a Justiça não é uma questão do Executivo é enrolação. Justiça é um conceito muito mais amplo, que não se restringe ao Judiciário. É de toda a sociedade. O Executivo pode encaminhar questões ao Judiciário”, critica.
Da Rede Brasil Atual